sexta-feira, 10 de setembro de 2010

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E A NOITE VIRÁ - Milena Martins

Para Amanda Toledo


Nos encontramos hoje à noite. Estávamos num café na Lapa e eu te vi perto da janela. Teu rosto magro, o cabelo preso, como nunca costumas estar. Respeitosamente, conversamos. Procuramos não falar dos acontecimentos. Não nos abraçamos como as amigas que fomos, nem nos tocamos uma só vez. Mas me lembro de termos rido ao tentarmos trocar de mesa, quando aquele homem gordo de barba e cabelos crespos sentou lá antes de nós. Comemos salgadinhos e bebemos chocolate expresso numa xícara pequena. A minha era diferente da tua, que tinha traços dourados nos detalhes da asa. A minha era toda branca e comentaste que eu estava mais branca. De lá, eu podia ver os arcos, as pedras portuguesas das calçadas e ninguém passando. Vi tua mochila antiga com aquele bótom do Queen que foi o último presente que te dei. Os rabiscos estavam lá, como antes, e ela estava rasgada onde não havia rasgo antes. Não lembro da tua roupa. Não vi a minha. Falamos por um tempo e depois não sei. Um som muito agudo e repetitivo me jogou de volta àquela repetição aguda de fatos e responsabilidades diárias, das quais tentamos fugir inventando lugares limpos. Mas eu sei que estavas lá comigo, num café de sonho numa Lapa imaginária, comendo salgadinhos sem gosto em meio a uma conversa sem assunto. Eu sei que estiveste lá também. E se me perguntarem com o que sonhei hoje à noite, direi fingindo desatenção da conversa: com dragões. Depois voltarei a algum trabalho monótono ou a um texto do qual não li, por certo, uma letra sequer. Estou cansada, tem um nódulo grande nas minhas costas sinalizando o peso dos meus dias. Não tenho sono, quase não durmo, mas mesmo assim espero que chegue a noite e eu possa dormir como hoje à noite e te encontrar num café de sonho numa Lapa imaginária, pra comer salgadinhos sem gosto e falar nada. E isso tudo é só me faltas. E, se estiveres lá, novamente, eu te direi que seja doce e sete vezes brindaremos, como nunca mais. Talvez a sorte venha com a noite. E a noite virá.


Conto do livro Promessa Vazia (Multifoco Editora, 2010)





Imagem: autor ignorado







1 Comentário

Anônimo

A noite virá. E eu estarei lá.

=D