sexta-feira, 24 de setembro de 2010

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Explosões - Ricardo Bruch

Segurava um livro fechado nas mãos. Encarava o chão como se as letras estivessem escritas nele. Paria mil pensamentos calados e uma ânsia de fazer algo se apoderou da minha espinha na forma de um calafrio. No jardim surgiam pedaços de caule, de folhas, de botões e pétalas, muitas pétalas para ornar minha sombra; insetos me rondavam como se eu fosse o Sol; o playground destinado às crianças fora desabitado no dia de sua criação. Todas as crianças desse prédio são velhas, estão doentes ou mortas dentro dos quartos coloridos e recheados de objetos completamente inúteis.
No primeiro patamar via pés se movendo sem sair do lugar, pés pequenos. Certamente os dedos são também são miúdos, pensei enquanto observava um par de canelas, joelhos e coxas grossas, brilhantes de suor. Apenas metade do corpo se apresentava aos meus olhos, a outra parte: um rabo de cavalo, um pedaço de braço, um naco de ombro, surgia para instigar minha curiosidade. De dentro da academia, o motor da esteira fazia coral com os aparelhos de televisão dos andares superiores. E os pássaros? Sei que eles estão aqui em algum lugar, sussurrava às pétalas aos meus pés. Alheias à minha atenção, as plantas cresciam, cresciam e cresciam em tempo absurdo, tempo o suficiente para não reconhecer mais as paredes, a churrasqueira, o playground nunca usado. Uma fagulha de lembrança de todo o lugar pinicava a sola do meu pé; contudo não via pássaros, nunca os vi por aqui. A esteira insistia em cantar a mesma melodia pungente de parafusos e motores, silenciando completamente o eco dos pássaros da minha imaginação.
Estiquei as pernas, os braços se espreguiçaram como se tivessem vida própria e quisessem se despregar do meu tronco. Me levantei com um único pensamento em riste, um repeteco duma idéia muda, igual a todas as outras que me vieram hoje. Estranho, disse. Muito estranho, concordei. Tirei o tênis, a meia, escondi-os com o livro fechado debaixo do banco de pedra. Provavelmente esse ato de esconder o tênis debaixo do banco é completamente desnecessário, já que ninguém tem tempo para andar em jardins. Caminhei olhando para cima, não encontrando nuvens, balões, anjos, havia apenas rostos preocupados, flagrando-me a caminhar com os pés descalços pelo jardim do prédio. Sentia a terra fria e molhada sob mim. Tinha vontade de arrancar a roupa e rolar nu na grama, feito um cão. Queria me sujar inteiro de terra, sentir a natureza grudada no meu corpo, ser bicho. Mas seguia educadamente, pousando os pés com zelo no solo para não fazer estragos na grama, que mal respirava e se pudesse reclamaria do meu peso.
Contornando o edifício, ouvi um estrondo ao alcançar a porta da entrada.
O eco da explosão ressoou no ar por muito tempo, como se várias coisas explodissem ao mesmo tempo: várias explosões dentro de uma só.
Após um segundo esperei o nascimento de um grito que não veio, mas certamente existiu na memória, na figura pela metade que andava na esteira e expelia tempestades pelos poros. Da frente do prédio não conseguia distinguir se a esteira continuava se movendo, se continuavam gemendo os motores, os parafusos, a lona infinita. Com a explosão tive certeza que pássaros não existem, pois nenhum voou amedrontado, nem gritou, nem saiu do ninho para ver o que aconteceu com o grupo de pessoas que rolava ladeira abaixo.
Apertei o botão do interruptor, avisando o porteiro que queria sair. Talvez o porteiro fosse um pássaro, pois não tinha ninguém atrás do vidro fosco. Pulo os limites do portão e dou por mim descalço entre a multidão, seguindo a explosão pela calda de seus ecos, pela reverberação de suas camadas infinitas.
– Você viu o que aconteceu? – uma mulher perguntou.
– Não. Apenas ouvi uma explosão. – menti. Pois foram muitas explosões, que se sustentavam por todos os cantos e que explodem ainda agora.
– Espero que não tenham crianças envolvidas. – disse outra mulher.
– Ou cachorros – disse outra, correndo com um poodle entre as mãos.
– O que aconteceu? – Perguntou uma senhora enquanto caminhávamos com passos rápidos, descendo a rua para topar de cara com o centro do universo, com o intestino do mundo recém explodido.
– Ainda não sei. Ouvi dizer que têm crianças e animais envolvidos.
– Que horror! – levou as mãos à boca.
Me aproximei do aglomerado de pessoas em volta de algo não identificável; sirenes pareciam soar distantes, distantes demais para tirar a curiosidade do povo que estava ali sem saber direito porquê. Sirenes distantes demais para que pudessem ouvir:
– Não se aproximem. Pode explodir de novo.
Sirenes distantes demais.
Subitamente, não sei se foi uma nova explosão ou um de seus ecos que ensurdeceu o barulho da sirene e do buchicho. Senti-me suspenso no ar entre objetos e pessoas sem asas. Não sentia nada, apenas voava entre nuvens e sonhos azulados, que não tiveram tempo de nascer. Distantes, pequenos pontos negros brincavam entre as estrelas.
– Pássaros! – gritei, aconchegado nos braços do meu pai.




Imagem: Dana Goad

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