
No primeiro patamar via pés se movendo sem sair do lugar, pés pequenos. Certamente os dedos são também são miúdos, pensei enquanto observava um par de canelas, joelhos e coxas grossas, brilhantes de suor. Apenas metade do corpo se apresentava aos meus olhos, a outra parte: um rabo de cavalo, um pedaço de braço, um naco de ombro, surgia para instigar minha curiosidade. De dentro da academia, o motor da esteira fazia coral com os aparelhos de televisão dos andares superiores. E os pássaros? Sei que eles estão aqui em algum lugar, sussurrava às pétalas aos meus pés. Alheias à minha atenção, as plantas cresciam, cresciam e cresciam em tempo absurdo, tempo o suficiente para não reconhecer mais as paredes, a churrasqueira, o playground nunca usado. Uma fagulha de lembrança de todo o lugar pinicava a sola do meu pé; contudo não via pássaros, nunca os vi por aqui. A esteira insistia em cantar a mesma melodia pungente de parafusos e motores, silenciando completamente o eco dos pássaros da minha imaginação.
Estiquei as pernas, os braços se espreguiçaram como se tivessem vida própria e quisessem se despregar do meu tronco. Me levantei com um único pensamento em riste, um repeteco duma idéia muda, igual a todas as outras que me vieram hoje. Estranho, disse. Muito estranho, concordei. Tirei o tênis, a meia, escondi-os com o livro fechado debaixo do banco de pedra. Provavelmente esse ato de esconder o tênis debaixo do banco é completamente desnecessário, já que ninguém tem tempo para andar em jardins. Caminhei olhando para cima, não encontrando nuvens, balões, anjos, havia apenas rostos preocupados, flagrando-me a caminhar com os pés descalços pelo jardim do prédio. Sentia a terra fria e molhada sob mim. Tinha vontade de arrancar a roupa e rolar nu na grama, feito um cão. Queria me sujar inteiro de terra, sentir a natureza grudada no meu corpo, ser bicho. Mas seguia educadamente, pousando os pés com zelo no solo para não fazer estragos na grama, que mal respirava e se pudesse reclamaria do meu peso.
Contornando o edifício, ouvi um estrondo ao alcançar a porta da entrada.
O eco da explosão ressoou no ar por muito tempo, como se várias coisas explodissem ao mesmo tempo: várias explosões dentro de uma só.
Após um segundo esperei o nascimento de um grito que não veio, mas certamente existiu na memória, na figura pela metade que andava na esteira e expelia tempestades pelos poros. Da frente do prédio não conseguia distinguir se a esteira continuava se movendo, se continuavam gemendo os motores, os parafusos, a lona infinita. Com a explosão tive certeza que pássaros não existem, pois nenhum voou amedrontado, nem gritou, nem saiu do ninho para ver o que aconteceu com o grupo de pessoas que rolava ladeira abaixo.
Apertei o botão do interruptor, avisando o porteiro que queria sair. Talvez o porteiro fosse um pássaro, pois não tinha ninguém atrás do vidro fosco. Pulo os limites do portão e dou por mim descalço entre a multidão, seguindo a explosão pela calda de seus ecos, pela reverberação de suas camadas infinitas.
– Você viu o que aconteceu? – uma mulher perguntou.
– Não. Apenas ouvi uma explosão. – menti. Pois foram muitas explosões, que se sustentavam por todos os cantos e que explodem ainda agora.
– Espero que não tenham crianças envolvidas. – disse outra mulher.
– Ou cachorros – disse outra, correndo com um poodle entre as mãos.
– O que aconteceu? – Perguntou uma senhora enquanto caminhávamos com passos rápidos, descendo a rua para topar de cara com o centro do universo, com o intestino do mundo recém explodido.
– Ainda não sei. Ouvi dizer que têm crianças e animais envolvidos.
– Que horror! – levou as mãos à boca.
Me aproximei do aglomerado de pessoas em volta de algo não identificável; sirenes pareciam soar distantes, distantes demais para tirar a curiosidade do povo que estava ali sem saber direito porquê. Sirenes distantes demais para que pudessem ouvir:
– Não se aproximem. Pode explodir de novo.
Sirenes distantes demais.
Subitamente, não sei se foi uma nova explosão ou um de seus ecos que ensurdeceu o barulho da sirene e do buchicho. Senti-me suspenso no ar entre objetos e pessoas sem asas. Não sentia nada, apenas voava entre nuvens e sonhos azulados, que não tiveram tempo de nascer. Distantes, pequenos pontos negros brincavam entre as estrelas.
– Pássaros! – gritei, aconchegado nos braços do meu pai.
Imagem: Dana Goad
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