segunda-feira, 20 de setembro de 2010

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Midas [18] - Sonia Regina

CAPITULO 18.

Meu assoalho de plantas.


Invejei bastante o quintal de Rubem Braga, onde seu pé-de-milho pendoou . Agora não invejo ninguém com casa ou apartamento com varanda. Algumas idéias, palavras, e pronto: construímos, Midas e eu, um quintal no meu apartamento. Dessas coisas que só a escrita realiza, depois de muita escuta e leitura: bens e males que convêm a um poeta urbano.
Uma noite morna e nublada nos alcançou ainda no jardim. Nenhum mosquito zumbia, ouvia-se o marulhar das pequenas ondas. À moda do tempo em que coordenávamos laboratórios de letras fomos imaginando e construindo, oralmente, um texto em conjunto:
- “Pois tenho não tábuas corridas ou piso de qualquer modernidade, meu assoalho é de plantas. Tijolos de vidro recobrem jardineiras, há calhas laterais para escoamento e as ervas aromáticas que dão à fartazana alegram o dia, além de temperar os pratos. À noite seu verde reflete a luz que lá está embutida.”
- “Adiante o chão de terra, com palmeiras e relva. À volta de um riacho que faz uma curva, uma praia delicada. Um bom naco de céu, num canto que o sol já descobriu.”
- “Ah, e um poço profundo, cuja função ainda não descobri. Não serve pra beber, a água: é marinha.”
- “Em certas noites de lua cheia, a lembrar com saudade de combinados nada políticos ou práticos, ao lado do poço eu me sento. É onde alguma luz se esconde, não a do dia inteiro. Tampouco é uma claridade presa, como a do poema do Neruda.
O vento norte chega morno, à noitinha. Percorre a casa e, de entre o coentro e a hortelã, vem a mim. Seca-me os cabelos e perfuma-os. Escuto-o, mas não compreendo o que assobia.”
Midas levantou-se da rede para pegar um cigarro, bocejou, e disse:
“Amanhã prosseguimos? Tenho sono.”
Percebi. E admirava aquele seu jeito de expor-se sem deixar de proteger-se, ao usar a palavra. Algo instintivo, vindo de sua natureza secreta. Que por vezes calava, como nesse momento.
Fui dormir, pensando no meu assoalho de plantas e no poema de Neruda que Midas havia referido. Uma pista? Talvez...



Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.

Neruda




Os sentidos de nossa humanidade

Creio que haverá sujeitos enquanto houver palavra. Ainda que a palavra, sendo falha, produza mal-entendidos ou mal-estares. Se essa transmissão se realiza, carregará em si o núcleo fundamental – a essência. Em outras palavras: se transmitidos, os sentidos de nossa humanidade serão renovados e retransmitidos às gerações futuras.


A cada surpresa, um prazer

A cada leitura textos me interceptam com sons virgens, originais, vindos de palavras anteriormente caladas – não mudas -, que foram ganhando corpo, numa ordem poética dócil e de fibra: firme ternura.
Uma navegação frutuosa que acolhe e instiga o meu ‘eu leitor’ como num arranjo jazzístico: a cada surpresa, um prazer.



Imagem: flickr.com - JARDIM 2




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