- na rodoviária
Sete horas da manhã. Filó, mala e tudo estão na rodoviária.
No bilhete de embarque, o horário da partida: oito horas. Restalhe,
portanto, uma hora inteirinha de pura vadiagem.
Nos corredores da rodoviária, Filó observa as pessoas: gente
da cidade, gente de fora, migrantes, imigrantes, solitários,
malucos de toda espécie. E famílias pequenas, famílias grandes,
bebês, bebês, muitos bebês. E malas, malinhas, sacolas, caixotes
que o deixam intrigado: como é que enfiam tudo isso nos ônibus?
Um menino descalço arranca Filó dos seus pensamentos:
- Tio, me dá um trocado?
Filó enfia a mão no bolso e tira uma moeda. O menino se
afasta mas logo depois vem outro. E outro, outros mais. Um bando
de meninos pedindo, chorando, implorando.
- Assim não dá! – reage Filó. – Vamos organizar essa bagunça.
Todos em fila, já!
Um a um, os meninos vão recebendo as moedas. Na fila estão
também mendigos, desempregados, vagabundos em geral – mas
isso, para Filó, pouco importa. Importante mesmo é a grandeza do
seu gesto.
Duas horas depois, Filó ainda às voltas com a distribuição de
moedas. O seu ônibus já vai longe, mas o que se há de fazer? A
necessidade das pessoas é algo que lhe corta o coração.
- o arquivo
O arquivo de nomes de Filó é o mais completo do mundo, sem
dúvida, e só perde mesmo para os Cartórios de Registro Civil da
cidade, que mesmo assim não arquivam nomes pelo prazer que isso
proporciona, mas antes pela obrigação do ofício.
Filó (que começou o arquivo após uma amnésia passageira
sofrida na juventude) faz dos nomes a sua mais querida e única
família, a eles dedica boa parte do seu tempo livre e não
raramente é visto na companhia das jovens grávidas do pedaço,
que buscam no arquivo um alívio para suas preocupações prématernais.
Às futuras mamães, como não poderia deixar de ser,
Filó indica centenas de nomes, esclarece os seus mais diversos
significados e ainda, para garantir o acerto da escolha, prontificase
ele mesmo a ser o padrinho do futuro portador. As mulheres,
depois de horas, saem do arquivo com as bolsas pesadas de tantos
nomes – mas a leveza da alma compensa o sacrifício.
Logo mais à noite, porém, um tristonho Filó secretamente se
lamenta por possuir um tão vasto arquivo de nomes e nenhum filho
querido para recebê-los.
- o ex-imperador
Bem no meio da semana, quarta-feira, o dia da
Independência. Pelas ruas da cidade deserta trafega um solitário e
bem-humorado Filó. Porque as ruas, as avenidas, os parques, os
monumentos públicos, tudo isso lhe pertence, é seu por direito:
não foram os outros mais afortunados para a praia, para a
montanha? Pois então!
Filó, que já se enxerga como imperador único e soberano da
cidade abandonada, caminha tranqüilo pelas ruas, sem pressa, sem
medo. Pode muito bem entrar aqui e sair ali, cuspir no chão sem
culpa, ir adiante ou voltar se lhe der na telha, gritar ou
permanecer calado – porque a cidade é sua, as ruas avenidas são
suas. Vai se preocupar com o quê?
Três horas mais tarde, depois de já ter visitado todas as ruas e
monumentos interessantes, o autoproclamado imperador Filó se
rende à mais plebéias das necessidades: a fome.
- Isso é fácil de resolver – diz ele em voz alta para seus súditos
imaginários. – Basta encontrar uma lanchonete e pedir um baita
sanduíche.
Muito fácil, sim, muito simples – mas nos dias comuns. Filó
agora, com os pés pela primeira vez bem plantados no chão,
percebe qual é a verdadeira cara da cidade nos feriados: uma
imensa boca vazia, com os dentes das portas cerrados, uma velha
senhora completamente insensível às necessidades de quem se
aventura a atravessá-la.
- Mas e agora, pô!?
De cabeça baixa, rabinho entre as pernas, um faminto eximperador
Filó cruza as ruas desertas da cidade em direção ao lar,
desolado e triste como um cachorro que caiu da mudança.
- filósoficas XII
- às vezes, quando o saco tá bem cheio, eu invento um sorriso
e levo a solidão pra passear
- o pinico espiritual
Filó, entre outras maluquices, tem desde a infância a mania
das coleções. De figurinhas a selos, de tampinhas a garrafas, tudo
isso ele já colecionou. Na adolescência, fase que propicia os mais
desvairados exageros, ele colecionou também, simultaneamente e
sem preconceitos, revistas de mulher pelada e bíblias em latim,
bolhas de sabão e quadrinhos de sacanagem. Com o passar do
tempo, porém, a maioria das coleções foi sendo perdida ou
lançada nas gavetas do esquecimento, como é natural. Dessa fase
de surpresas e de descobertas, de delícias e de incertezas, Filó
conservou apenas uma coleção, a mais original, que ele defende
como à própria vida: a dos recortes de anúncios e manchetes
estapafúrdias publicadas pela imprensa aqui & ali.
No Pinico Espiritual, espirituoso apelido dado ao álbum de
capa dura, 729 páginas formato grande, ele guarda pérolas do tipo:
“Gran Circus Maior do Mundo! Vem ver animaes selvagem,
paiaços, elephantes de bolso do Cazaquistão, leoens mestrados de
Paris, cachorritos saltitantes das Austrália e muitas otras atração.
Não perda! Sensacional promossão de inauguramento dia tal, na
boquinha da noite pertinho de Vosselência.”
Ou ainda:
“Charope de Groselha Tuiuiú – bão pra nova, bão pra veia,
bão pra tú.”
Ou mais essa, impressionante:
“Repórter aéreo se esborracha com helicóptero após tentativa
frustrada de acompanhar buraco de perto.”
Totalmente baseada no dia a dia dos jornais, a valiosa e única
coleção é disputada à tapa pelos colecionadores do mundo inteiro,
que por ela oferecem verdadeiras fortunas. Mas Filó, que na vida
só não aprendeu a colecionar dinheiro, prefere se manter alheio ao
assunto como se não fosse com ele.
domingo, 3 de outubro de 2010
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FILOBÔNIO FILÓ - parte 13
autor(a): Parreira
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