domingo, 3 de outubro de 2010

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Boletim 7




Adelina Velho da Palma nasceu em Lisboa e é do signo Aquário. É licenciada em Matemática pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa onde foi assistente de Análise Matemática, após o que iniciou e seguiu uma carreira dedicada à Informática.
Começou a escrever em 2002, prosa e poesia. Tem três colectâneas de contos publicadas - Areias Movediças e outras histórias de inquietação, O gato das oito vidas e A boa a má e a vilã, sob a chancela da editora Pé de Página - e um romance recém-lançado, Eu, invisual, me confesso, cuja resenha e ficha técnica podem ser lidas emhttp://nanquin1.blogspot.com/2010/03/nossos-escritores-na-estante-adelina_26.html .
As fichas técnicas e resenhas de suas obras estão na secção Nossos Escritores na Estante:http://nanquin1.blogspot.com/2010/03/nossos-escritores-na-estante.html .
Fazendo uso de um estilo narrativo muito próprio, intenso e linear, desprovido de artifícios e figuras de estilo, a autora prende o leitor desde a primeira página, explorando com mestria a natureza misteriosa e desconcertante da alma humana. Comédia e drama convivem lado a lado nas suas narrativas de onde saltam mundos, sendo o leitor forçado a aderir ao seu jogo, deixando-se conduzir suavemente pelo meio das suas tramas admiráveis, aguardando o desvendar do enigma que cada uma das histórias encerra.
No que concerne à poesia, Adelina Velho da Palma prima pela escolha de temáticas originais, ao mesmo tempo que privilegia o rigor da rima e da métrica. Gosta particularmente de escrever sonetos, tendo já redigido algumas centenas. A sérieSonetos escritos sobre os signos do zodíaco está sendo publicada na secçãoTemáticos desta revista.
Autora-colaboradora desta Casa, Adelina foi também a vencedora de Desvendando um Conto 1, o primeiro concurso de resenhas que realizamos.Aqui pode ser acessada a resenha que escreveu sobre o conto UM ÚLTIMO TRAGO , de Borboleta.
Uma selecção de poemas assim como excertos das suas obras em prosa podem ser lidos na sua página pessoal http://www.adelinapalma.com/ .
Qualquer contacto com a autora pode ser encaminhado para o endereço de emailadelina.p@gmail.com

Sobre as obras da autora:

Resenha do livro Areias Movediças e outras histórias de inquietação, por Henrique Chagas





A poesia e a prosa de Adelina Velho da Palma

Os três poemas que se seguem estão impressos nas páginas finais do livro Eu, invisual, me confesso.




FAZER OU NÃO FAZER EIS A QUESTÃO

O que há que fazer tem que ser feito
no tempo que nos é dado fazer,
se durante esse tempo não for feito
bem feito poderá nunca mais ser!

S’uma causa provoca um efeito
cujo fim é urgente conhecer
a solução é seguir a direito
assumindo o que tem que se fazer!

É preferível sofrer pelo defeito
de algo que era mister cometer
não ter surtido o desejado efeito,

que viver a dor de se arrepender
de não ter tido coragem no peito
p’ra tentar o que havia que fazer!...


A IMAGINAÇÃO E A VONTADE

Querer não é poder, crer é poder,
a crença é o motor universal
tudo o que já se fez de bem ou mal
só pensamento começou por ser...

Isto explica porque muito temer
alguma coisa a torna real
e tudo acreditar num ideal
é meio caminho para acontecer!...

É inútil lutar por uma causa
só à custa de esforço, sem uma pausa,
se a nossa fé permanecer de fora...

Quando existe qualquer rivalidade
entre a imaginação e a vontade
a primeira sai sempre vencedora!...


ESTA DOR

Dói-me esta dor que dói tão dolorida,
dói-me esta dor que dói atormentada,
feita de dor somente, amargurada,
como uma dor de muita dor sentida...

É uma dor só de dor preenchida,
é uma dor só com dor misturada,
plena de dor e cheia de mais nada
a não ser a própria dor assumida...

Uma tal dor é permanente ferida
que a mesma dor retalha magoada
p’ra conservar a dor bem padecida...

É uma dor que quero bem guardada...
Apesar de me destroçar a vida
só por ela permaneço acordada!...


Abaixo reproduzimos trechos de três contos, um de cada um dos livros citados. Podem ser acessados, na íntegra, nos links que deixamos à disposição de vocês.




O CÍRCULO

(in Areias Movediças e outras histórias de inquietação)

" A sala de espera era pequena e acolhedora. Pairava no ar um aroma peculiar, adocicado, e fazia-se ouvir uma música suave, entorpecente. O tecto era baixo, forrado a madeira, e as paredes, maioritariamente ornadas de prateleiras, exibiam uma cor quente, entre o castanho e o alaranjado. Na parede do fundo, uma janela estreita deixava entrar uma réstia de luz solar filtrada por trepadeiras. Num dos cantos da sala, a recepcionista, uma mulher jovem de rosto inexpressivo, trabalhava sentada diante de um computador, de olhar fixo no ecrã, manuseando o rato. No canto oposto, um conjunto de sofás garridos, de gosto duvidoso, tentava alegrar o ambiente.

Sentada num dos sofás, com as costas muito direitas, Maria do Carmo aguardava a sua vez. Nunca tinha estado numa sala assim. Para além da recepcionista, era a única pessoa presente. Os seus olhos observavam os variadíssimos objectos que enchiam as prateleiras. Havia de tudo – imagens de anjos, aromas, paus de incenso, chás, livros sobre astrologia e ciências ocultas, velas e sacos de pó de todas as cores e tamanhos... Pequenos cartazes dispersos ofereciam a preços módicos um vasto leque de serviços esotéricos especializados, desde consultas de Tarot e alinhamentos de chakras até mapas astrais e fotografias da aura.

Para manter a postura, descruzou e tornou a cruzar as pernas. Sentia-se tensa e cheia de dúvidas. Sabia porque é que estava ali, mas não fazia a mais pequena ideia da entrevista que a aguardava. Suspirou e tentou relaxar, permitindo que as costas se apoiassem na parte posterior do sofá. Fechou os olhos e, numa tentativa de sistematizar as suas próprias ideias, passou em revista os acontecimentos que a tinham conduzido até àquele lugar.

O marido, José António, andava intratável. Desde sempre calmo e cordato, sofrera, nos últimos meses, uma considerável mutação. A pouco e pouco, tornara-se desagradável e intolerante, como se vivesse debaixo de uma grande tensão. A paciência havia-o abandonado gradualmente e, nos últimos tempos, qualquer contrariedade, por insignificante que fosse, provocava-lhe uma reacção desmedida, desproporcionada em relação à real dimensão do aborrecimento.

Em vão Maria do Carmo tentara perceber as razões de tão estranha metamorfose. Chegara a suspeitar de que o marido estivesse doente. Havia tempo soubera de um caso semelhante, em que acabara por se descobrir que o paciente sofria de um tumor nas cápsulas supra-renais. Porém, usando de diplomacia, indagara junto dos colegas do marido se a sua alteração de comportamento seria extensiva ao emprego. E o que soubera levara-a a concluir que não. Na fábrica onde trabalhava como chefe de produção, José António continuava a ser considerado de fácil relacionamento e mantinha a boa imagem que sempre tivera.

Por consequência, Maria do Carmo já não tinha dúvidas de que a alteração do marido se circunscrevia ao ambiente familiar. O que a levava a presumir que seria ela a causa próxima dessa modificação. No entanto, repudiava qualquer explicação que envolvesse a existência de outra mulher. E, amando o marido, suportara os seus maus humores com paciência, agarrando-se à esperança de que tratar-se-ia de uma fase passageira.

Todavia, dois dias antes, as coisas haviam mudado de cariz. José António pisara o risco. À noite, após o jantar, por uma questão de lana caprina, tinha-lhe levantado a mão! Não lhe chegara a bater, mas o braço fora erguido, num inequívoco gesto de agressão, e Maria do Carmo ficara em estado de choque. Nunca, no decorrer dos já doze anos de casamento, imaginara que um dia pudesse vir a defrontar-se com uma tal situação. Nessa noite não conseguira dormir e, no dia seguinte, indignada e deprimida, desabafara com a sua amiga Joana.

Maria do Carmo abriu os olhos e sorriu. Joana era uma boa amiga. Todavia, as duas eram muito diferentes. Enquanto Maria do Carmo parecia exactamente aquilo que era - uma engenheira, funcionária pública, racional e de poucas falas, Joana, empresária de sucesso, detentora de um grande dom de palavra, escondia uma perfeita simbiose de misticismo e pragmatismo.

Após ouvir o relato do drama conjugal da amiga, Joana dissera-lhe:

- Conheço uma pessoa que pode ajudar-te.

- Quem?

- Uma pessoa...

Maria do Carmo sentia-se tão em baixo que nem chegara a perceber muito bem de quem se tratava. Uma espécie de vidente, supunha. O nome era Luís do Lago. E nem tivera forças para protestar. Apática, deixara-se conduzir por Joana até uma obscura ruela na vila de Sintra, nas faldas da serra. Aí, Joana largara-a à porta de uma casa baixa, de aspecto menos que modesto, exclamando:

- Boa sorte! - e abalara a fim de ir tomar chá ao centro da vila, enquanto aguardava o fim da entrevista da amiga.

Como um autómato, Maria do Carmo tocara à campainha premindo um botão enferrujado. A porta abrira-se e ela descera umas escadas rangentes e sombrias, rumo a uma cave em cuja porta se encontrava uma recepcionista jovem, de aspecto vulgar. E assim chegara àquela sala de espera. A consulta, com carácter de urgência, fora conseguida por especial favor, visto Joana ser uma cliente antiga de Luís do Lago. E fora necessário fornecer certos dados previamente - a data de nascimento de Maria do Carmo e o diminutivo pelo qual os pais a chamavam em criança.

Os olhos de Maria do Carmo humedeceram com a lembrança do marido numa atitude ameaçadora, de braço erguido e fácies transtornado. E percebeu que só o desespero a podia ter levado até ali.

Um ruído de vozes chamou-a à realidade. Viu a porta da sala de espera, até aí aberta, fechar-se, e ouviu uns passos que se afastavam. Pouco depois, a porta abria-se de novo, deixando entrar um homem baixo e atarracado, muito largo de ombros e totalmente calvo, envergando umas calças de ganga e uma swet shirt de aspecto enxovalhado. O homem olhou na direcção de Maria do Carmo e disse-lhe com voz roufenha:

- Desculpe ter fechado a porta mas, neste ramo, temos de usar a máxima discrição..." (...)

Leia o conto completo:O_circulo.pdf





O SOBRENOME

(in O Gato das oito vidas)

" Nunca esquecerei o dia em que conheci Mário Corte-Real. Lembro-me como se fosse hoje. Seriam umas nove horas da manhã e o dia estava escuro. Uma luz difusa e amarelada iluminava o meu local de trabalho, um amplo gabinete de grandes janelas de vidro fumado, chão e tecto falsos. Apesar da hora matutina, os meus colegas encontravam-se sentados à secretária, imersos no trabalho. Pelo menos manipulavam o rato e teclavam de forma sonora. De repente, a porta abriu-se e o nosso director entrou, seguido de um homem magro, de estatura média. Aproximou-se da minha secretária e, desajeitado como sempre, disse-me, enquanto apontava o dedo para o ilustre desconhecido:

- Eis o nosso novo colaborador!

Olhei o recém-chegado e estendi-lhe a mão. Mais uma vítima do capitalismo desenfreado que se vê forçada a vir aqui vender a sua força de trabalho, pensei para mim mesma, com ironia.

- Mário Corte-Real, muito prazer – proferiu o indivíduo um pouco corado, numa voz baixa com um ligeiro sotaque nortenho, esboçando um sorriso e apertando a minha mão com firmeza.

Nesse preciso momento o ruído das teclas cessou. E os meus colegas de gabinete levantaram os olhos.

- Bem vindo! – respondi, olhando aquela aparição com mais atenção.

O nosso director prosseguiu com as apresentações à pressa e, a cada uma, faziam-se ouvir as palavras mágicas:

- Prazer. Mário Corte-Real.

Concluídas as formalidades no nosso gabinete, o director rodou sobre os calcanhares e desapareceu pela porta, levando consigo a nova aquisição da Direcção, rumo a outros gabinetes e apresentações.

Ninguém teceu um único comentário (que estranhos estavam os ânimos naquela manhã!). Olhámos uns para os outros, meio embruxados e durante trinta ou quarenta segundos pairou na atmosfera uma espécie de êxtase colectivo. Evaporado este, os olhares regressaram aos monitores e fez-se ouvir de novo o matraquear dos dedos nos teclados.

Não sei porque recordo este singelo episódio com tanta nitidez. Naquela altura a empresa encontrava-se em franco crescimento e as admissões eram frequentes. Claro que, a não ser que viessem aliviar directamente o trabalho de cada um, eram recebidas com displicência. E só encontro uma explicação para o fenómeno - Mário Corte-Real era um caso à parte. Ninguém ficava indiferente àquela sonoridade sobrenominal. E, embora houvesse suspeitas (nunca confirmadas, aliás) de que a sua admissão não seguira os trâmites habituais, toda a gente aceitava o facto como natural.

Mário Corte-Real não era propriamente bonito. Contudo, tinha uma figura agradável, um sorriso simpático e um ar suficientemente masculino para se tornar atraente. O rosto era oval, de testa alta, nobre, nariz aquilino e lábios finos. O cabelo era castanho claro, rebelde e um pouco comprido, com alguns fios prateados. Os olhos eram grandes, de uma cor indefinida entre o castanho e o esverdeado, e transmitiam a sensação de uma argúcia extrema. Eram olhos que nunca vagueavam ao acaso, que analisavam e sintetizavam sem cessar. Os seus gestos eram contidos e vestia com simplicidade.

Com efeito, Mário Corte-Real era um homem encantador. Ao contrário da generalidade das pessoas de apelido sonante, propensas a provocar antipatias viscerais, ninguém resistia ao seu fascínio. E um factor decisivo para tal consistia na evidência de que tudo fazia para não dar nas vistas. Quem é que podia deixar de reparar num homem assim?! E, embora isso se notasse maioritariamente depois de lhe conhecermos o sobrenome – selo inequívoco da melhor das estirpes - o certo é que se desprendia dele uma tão elegante reserva que o tornava irresistível.

Mário Corte-Real entrava cedo. Às oito horas da manhã estava no seu posto. Cumpria escrupulosamente o horário de forma a não deixar dúvidas de que não gozava de quaisquer privilégios. Contudo, saía cedo também. O que originava especulações fortuitas sobre eventuais afazeres fora da empresa. Por norma, almoçava sozinho. Porém, se alguém o desafiasse, alinhava sem se fazer rogado. No entanto, conquanto fosse simpático, nunca falava de si próprio. Às vezes deixava escapar uma informação solta, desgarrada, que nada revelava de importante sobre a sua pessoa. No fundo, não se dava a conhecer. E conseguia esquivar-se com tal tacto que, quem procurasse saber mais da sua vida (sempre de forma subtil - ninguém se atrevia a questioná-lo directamente) acabava por desistir sem chegar a sentir-se intruso. Sim, Mário Corte-real era um homem com o seu quê de misterioso. O que o tornava ainda mais cativante.

Não foi preciso muito tempo para a fama de Mário Corte-Real se propagar para fora da nossa Direcção. E foi inevitável a minha colega Fátima Figueira, uma criativa iluminada da direcção comercial da empresa, reparar nele. Um dia, passado cerca de um mês sobre a admissão de Mário Corte-Real, enquanto nos dirigíamos as duas para o restaurante onde almoçávamos às quartas-feiras, agarrou-me o braço e segredou-me ao ouvido:

- Posso morrer!... Já vi o Corte-Real. Estive numa reunião com ele.

- E que tal?...

- Lindoooo!... Simples, simpático, sem peneiras nenhumas. E deve ser muito esperto. Já reparaste nos olhos que ele tem?...

- Não achas que é um pouco cedo para uma opinião tão peremptória?

Mas não era. Mário Corte-real era competentíssimo. Ao fim de somente seis ou sete semanas havia na Direcção uma total unanimidade em relação à invulgar qualidade do seu trabalho. À primeira vista poderia parecer apenas mais um de entre os muitos que contribuíam activamente para a geração das toneladas (melhor dizendo, dos gigabytes) de código que ali se produziam por ano. Nada mais errado. Por sistema, lograva encurtar os prazos de execução e demonstrar um rigor muito superior ao expectável em todas as tarefas que lhe eram confiadas. Às vezes eu questionava-me se tal se deveria a uma real craveira superior ou simplesmente a uma gestão pessimista de expectativas. Mistério. O efeito do nome Corte-Real era imponderável.

Nas reuniões, falava pouco. Mas, quando o fazia, era escutado com atenção e nunca era interrompido. A sua presença impunha-se de tal modo que, conquanto não defendesse as suas ideias com garra, estas evidenciavam uma inquestionável aura de rasgo e eram invariavelmente aceites. Todavia, nem sempre surtiam os resultados esperados. Mas, curiosamente, esse facto não parecia preocupar ninguém. Enfim, Mário Corte-Real era um génio. " (...)

Leia o conto completo:O_sobrenome.pdf



A BELDADE

(in A boa, a má e a vilã)

" Por pouco permeáveis que sejamos, há sempre algo das opiniões alheias que se sedimenta dentro de nós. Talvez por isso, quando travei conhecimento com Eduardo Sanches, tive uma certa dificuldade em avaliar de forma isenta a impressão que me causou.

O nosso encontro deu-se em casa de Rita Trajouce, a esposa de um homem de negócios que, após ter alcançado uma razoável fortuna à custa de especulação bolsista, soubera parar a tempo. Mulher na casa dos quarenta anos, bonita e exuberante, o dinheiro do marido dava-lhe a margem de manobra de que ela necessitava para brilhar em sociedade. Rita dava numerosas festas e frequentava os lugares mais em voga. Contudo, não era snobe. Gostava verdadeiramente das pessoas e não convivia apenas com quem, de algum modo, pudesse contribuir para a sua aura de notoriedade. Nas suas recepções, figuras badaladas misturavam-se saudavelmente com amigos menos notáveis.

Os Trajouce moravam numa belíssima vivenda em Colares, quase um solar, adquirida por bom preço a uns nobres empobrecidos. Situada na parte mais antiga daquela que é a vila mais ocidental da Europa (e Património Mundial), a propriedade era maravilhosa. Quando Rita e o marido a tinham adquirido, encontrava-se abandonada havia décadas. Fora necessário levar a cabo um difícil e dispendioso trabalho de reconstrução, sem mudar fosse o que fosse da estética original. Mas os Trajouce estavam de parabéns. O resultado final, conjugando a arquitectura de origem com toda as comodidades modernas, era deveras impressionante.

Para lá se chegar era necessário alcançar a Várzea de Colares e, a partir daí, subir por ruas íngremes e tortuosas, de piso irregular. Todavia, o trajecto valia a pena. Logo no início encontrava-se a Quinta de Santo Expedito, uma razoável extensão outrora luxuriante e então tristemente abandonada, como um vasto sepulcro de cameleiras mortas. Contudo, uma breve paragem permitia já usufruir de uns primeiros laivos de panorama. Em baixo, a Várzea espraiava-se a nossos pés, com o seu casario branco e desempoeirado. Pressentia-se de imediato a existência de muita água. Por toda a parte havia ribeiros e fontes, e quase que se podia reconhecer o borbulhar dos sifões naturais do subsolo. Até onde a vista alcançava, o vale e a encosta estavam cobertos de arvoredo e a vegetação era abundante e viçosa. Continuando a subir encontrava-se o Largo da Igreja Matriz com a Fonte de Melides, onde se situava o café mais antigo da vila. À medida que se prosseguia a escalada, as ruas estreitavam-se e as construções iam evidenciando um cunho cada vez mais antigo. Passava-se por uma pequena praça dominada por uma casa imponente, um edifício peculiar e um pelourinho, respectivamente o tribunal, a prisão e a forca de tempos idos. Do lado direito avistava-se já o Palácio da Pena. À esquerda, uma nesga de oceano insinuava-se por entre dois cabeços, alargando rapidamente à medida que se subia. Se o mar estivesse bravo, eram visíveis os cachões de espuma branca e audível o fragor da rebentação. Por fim, alcançava-se o Castelo de D. Nuno Álvares Pereira, assim chamado devido a ter sido oferecido ao Condestável por el-rei D.João I após a batalha de Aljubarrota. Nas imediações do castelo a vegetação era singularmente tropical, composta por bananeiras e árvores de borracha, facto que se devia a, em determinada altura, terem sido pertença do Ministro Fontes Pereira de Melo, que trouxera numerosas espécimes africanas das suas frequentes viagens àquele continente.

Oculta entre o castelo e a parte posterior da encosta, não era fácil encontrar a casa de Rita Trajouce. Um sóbrio portão em ferro dava acesso ao jardim fronteiro à mansão, arranjado com gosto e sem ostentação. O mesmo se podia dizer da vivenda propriamente dita, que se enquadrava harmoniosamente no ambiente ao redor.

Eu conhecera Rita havia algum tempo (alguém a trouxera ao lançamento de um dos meus livros) e, embora não nos pudéssemos considerar íntimas, a nossa amizade crescera rapidamente, alimentada por uma mútua empatia. Na verdade, era evidente para mim que Rita, indiferente de início, me passara a olhar com outros olhos após ter lido alguns dos meus escritos. Este fenómeno não era incomum. Todavia, tal reconhecimento implícito, vindo de uma mulher culta e inteligente como Rita, era-me particularmente lisonjeiro. A sua admiração pelo meu trabalho e pelas condições difíceis em que eu o desenvolvia era genuína. Aliás, não haveria mais nenhuma razão para Rita me brindar tão amiúde a mim, uma obscura escritora em início de carreira, com amáveis convites para jantares em sua casa, que eu aceitava de bom grado. O que não deixava de ser curioso pois o meu psiquismo era radicalmente adverso à vacuidade desse tipo de ambientes. Todavia, a casa de Rita Trajouce era uma excepção. Afigurava-se-me encontrar ali, no meio de um punhado de figuras conhecidas, o contraponto indispensável ao desenvolver de uma escrita com pretensões de profundidade.

Quanto a Rogério, o marido de Rita, era um homem amistoso, mas de poucas falas. No entanto, submetia-se com bonomia às iniciativas da mulher. Não lhe desagradava receber convidados e dava-lhe um particular prazer mostrar a propriedade e descrever em pormenor a maneira como as obras de recuperação haviam sido conduzidas. Claro que havia quem assegurasse que Rogério Trajouce não havia enriquecido da maneira mais honesta. Eu própria apenas podia fazer uma pálida ideia do valor de certas obras de arte exibidas no salão da residência, como um pequeno quadro atribuído a Turner. Mas, quem se importaria com a verticalidade da origem dos fundos cuja fruição era tão simpaticamente compartilhada com os amigos?...

Certa noite, os Trajouce comemoravam um aniversário de casamento e haviam reunido na sua residência três ou quatro dúzias de convidados. Deambulava eu, de copo de vermute na mão, pelo agradável jardim da propriedade, perscrutando com o meu olhar a acidentada Praia da Adraga (que tinha o condão de sempre me recordar o drama da Rainha D.Amélia de Órleans e Bragança, nos dias que se seguiram ao golpe de 1910), quando Rita se me dirigiu com a habitual desenvoltura:

- Venha, minha querida. Quero apresentá-la a uma pessoa.

- A quem?

- Eduardo Sanches.

Rita já se havia referido a esse personagem como o divorciado mais cobiçado da linha de Sintra. Expressão de que eu não podia, à partida, compreender o fundamento, pois sabia que não era propriamente um bom partido. E depreendia que se tratava de uma avaliação derivada unicamente da simpatia pessoal da minha amiga. Com efeito, ela e Eduardo conheciam-se havia muitos anos, praticamente desde a infância. As famílias de ambos pertenciam ao mesmo círculo de amigos. Rita teria tido um fraquinho por Eduardo durante a adolescência (que porventura ainda se mantinha), mas o namoro não dera em nada e cada um seguira o seu caminho. Formado em Economia com distinção, Eduardo casara ainda jovem, loucamente apaixonado, e tivera uma filha. Porém, ao fim de poucos anos, acabara por se divorciar. Desde então, Rita nunca mais lhe conhecera qualquer relação. Já lá iam mais de dez anos. " (...)

Leia o conto completo: A_beldade.pdf

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