terça-feira, 19 de outubro de 2010

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A REALIDADE A ENTRAR - Francisco Coimbra


Era uma toupeira, não se lembrava de alguma vez ter sido outra coisa. Mesmo tendo pensamentos estranhos, a posição das suas patas e membros anteriores davam-lhe a ideia de remar enquanto escava e avançava fazendo buracos na terra. Quando fazia as suas câmaras, casas que escolhia em função do sítio, da natureza do terreno e da necessidade de guardar comida. Pouco parara antes à superfície, pois sentia-se desprotegida.

Um dia decidiu começar a fazer buracos para depois os poder olhar, passou a ser uma toupeira escultora com gosto por esculpir formas onde julgava poder evadir o seu espírito ficando a olhar o resultado das escavações feitas. Fazia isto debaixo de terra, criou uma galeria grandiosa. O seu trabalho acabou por ser conhecido por outras toupeiras, passando as suas galerias a ser visitadas. Não tardou, de visitas, as outras toupeiras passaram a invasoras.

Sem se importar por terem expropriado os espaços que criara, começou a abrir buracos à superfície, sem cavar galerias. Perdera por completo o sentido prático, era agora uma escultora incompreendida, compulsiva. A sua arte até a ela lhe parecia estranha, porquê fazer o que fazia? Depressa ultrapassou essa crise, assumindo o lado existencial de realização que sentia nos buracos que continuava a abrir à superfície. Deste modo, acabou por atrair a atenção de dois ou três agricultores cujas hortas acabara por afectar.

Por muito parecido que me sinta com a toupeira, mesmo identificando-me com a necessidade poética, ilusória, supletiva, histriónica, sei lá... O final da história é um final possível, é a realidade a entrar... como lhe terá entrado na pele o chumbo de dois cartuchos, descarregados em simultâneo, dos canos de 12mm duma espingarda de caça.

26.09.10



Imagem: Miguel Monteiro
 
 
 
 

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