1
- anões e gigantes
O estacionamento do Palácio das Astúcias, apelido carinhoso
dado pelo povo às luxuosas instalações da prefeitura, vai sendo aos
poucos tomado pelos Anões. Vêm de toda a cidade, os Anões, com
famílias inteiras de Anões, pais mães filhos avôs avós Anões,
cachorros Anões. Fazem barulho, os Anões, bebem cerveja e
arrotam alto os Anões, brincam, mas a sua visita ao Palácio das
Astúcias não é uma visita social ou de lazer: vêm reivindicar junto
aos gigantes da prefeitura.
Os gigantes, no entanto, não estão nem aí, não estão nem um
pouco preocupados ou interessados nas reivindicações dos Anões.
Têm seus próprios interesses, os gigantes, têm mais o que fazer.
Uma cidade gigante deve ser administrada por gigantes, é o que
pensam os gigantes. E tem sido assim desde sempre, a História
prova e et cetera.
Filó, que prefere os Anões aos gigantes, assiste a tudo bem de
perto. O sangue ferve em suas veias, mas ele se mantém calmo,
sereno – à força, mas ainda assim: de nada contribuiria uma
intervenção sua em favor dos Anões. Por isso aguarda os
acontecimentos, em silêncio, roendo unhas e cuspindo ansiedade.
Os Anões, agora organizados, se preparam para falar. De uma
das sacadas da prefeitura, uma comissão de gigantes se prepara
para rebater os argumentos dos Anões. Democracia é isso.
- queremos o direito de ter direito! – grita finalmente o
representante dos Anões.
Os gigantes da sacada primeiro riem, depois gargalham. E
liquidam o assunto:
- O DIREITO DE TER DIREITO É DIREITO NOSSO! E PONTO FINAL!
E assim, mais uma vez, o Palácio justifica o apelido que tem.
2
- domingo
No domingo à tarde, depois do macarrão, a casa de Filó é
invadida pelas águas amargas do mau-gosto. A TV, feito um rio
doente, despeja suas águas sem medida, sem controle. Conclama
das profundas os seres inexistentes e os materializa, em cores e
carnes e peitos e bundas, e os expõe, generosamente, para o
deleite de muitos e a indignação de alguns.
Uma tarde Filó resolve protestar:
- Melhora, TV!
A TV não melhora.
- Muda, programação!
A programação não muda.
- Calaboca, apresentador!
O apresentador não cala. Ao contrário: xinga, gesticula,
costura frases com palavrões.
- Não tá satisfeito? – diz ele na tela, o indicador apontado
feito uma arma. – Então desliga o aparelho!
E Filó assim o faz.
3
- filósoficas XVII
- aos domingos, o pior da televisão é a televisão
4
- cobaia
Febre. Febrão. Preocupado, desconfiado, desesperadíssimo,
Filó vai ao médico. No consultório encontra uma médica, o que, já
de saída, o tranqüiliza um pouco. Porque confia nas doutoras.
- Tô assim e assado – ele diz.
A médica examina, aperta, pergunta isso & aquilo. Aí
comunica o diagnóstico:
- Não tenho mais nenhuma dúvida.
- ...
- É sarampo.
Filó volta para casa com a recomendação de repouso e boa
alimentação. E mais uns comprimidos. Mas o febrão continua
ardendo, queimando. Filó, delirante, vê um anjo – não, uma anja,
que determina:
- Hospital já!
Sem saber como, ele desperta num quarto branco e silencioso,
sobre uma cama alta e branca, metido num ridículo pijaminha
branco. Um hospital, sem dúvida.
Médicos e enfermeiras, o tempo todo. E estudantes de
medicina, dezenas, centenas deles. Examinando, apertando,
perguntando isso & aquilo. Um novo grupo de estudantes a cada
dez minutos. Paciente, o paciente Filó resiste a tudo, quieto e
sorridente como uma cobaia deve ser.
Quando recebe alta, três dias depois, Filó se despede de
todos, emocionado. Beija as enfermeiras na boca, sacode as mãos
dos médicos. E a cada um dos estudantes comunica, sarcástico:
- Precisando da minha colaboração, Filobônio Filó ao seu
dispor!
5
- o poço dos desejos
No quintal de Filó tem um poço que realiza desejos. Isso, pelo
menos, é o que se espera dele.
Fato ou mentira, mesmo assim as pessoas vêm e jogam
moedas. E sussurram para a orelha do poço:
- Quero uma casa própria.
- Quero arroz e feijão e leite pras crianças.
- Quero uma branca e uma preta e uma mulata.
Filó, que é dono do poço e do quintal, não joga moeda
nenhuma. Apenas recolhe as que foram jogadas. E assim vai
realizando os seus pequenos desejos.
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