domingo, 28 de novembro de 2010

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RAINING - Milena Martins

Saio de casa. Olho os lados. Ninguém. A rua deserta num domingo de sol incomum no inverno. Não chove, não chove. Se chovesse. Se. As esquinas vazias, nenhum intruso me observando atrás dos postes. Tranco a porta deliberando olhos escondidos por trás das cortinas de algum apartamento do prédio em frente. Olho as janelas, uma a uma, enquanto guardo as chaves no bolso da minha calça rasgada de velha, como as que eu comprava mais caras pelo estilo underground. Tão longe aquele tempo. Vidros abertos, cortinas escancaradas nos apartamentos. Ninguém me seguirá pelas ruas da vizinhança até o lugar que há tantas semanas eu planejo indeciso visitar. Estou a salvo. Abro o portão do quintal. Piso a calçada com o pé esquerdo e me arrependo. Mas sei que nenhum ritual pode me salvar. E sigo em frente.

Mas quero virar estátua de sal.

Mãos nos bolsos. Olhos no chão. Meus sapatos de grife estão rasgados na ponta. Sinto as pedras portuguesas das calçadas me arranharem as solas dos pés. Tudo está apodrecendo, o bolor na minha casa, nas minhas roupas, dentro de mim. Quero chorar. Quero querer gritar. Quero voltar no tempo ou conseguir sentir alguma coisa, qualquer coisa, reavivar uma lembrança de quando tudo era perfeito e eu só pensava em querer mais. Os peitos da minha prima ao sol na praia. O rock dos meus tios no último volume ecoando pelo sítio quando o poder ainda estava em botão. Mas toda flor apodrece. Tudo distante, tudo opaco. Se pelo menos chovesse, eu poderia cantar. Não consigo. Respiro o ar pesado do calor carioca, minha testa sua. E por um curto momento fico feliz, acreditando que o que sinto é esperança. Ou tentando com força lembrar como sentir esperança é. Paro em frente a ele. Ele me pergunta o que você quer?

Olho os lados, olho outros lados, olho pra frente e pra trás, pro azul e branco e pros sapatos rasgados. Estou fadado a ter sempre esse aperto no peito que chamam medo até que tudo isso acabe. E será logo. Sinto alguém às minhas costas. Ninguém. Sinto que me seguem pelos postes, que me observam pelas esquinas, que invadem o meu quarto e me apontam um dedo na cara, que me descobrem, que me punem. Ninguém. Pestanejo, hesito, quase chego a desistir, mas tenho medo do mim mesmo que voltará frustrado praquela casa desgraçada que chamo de minha, enfurecido pela covardia desse eu de agora que duvida e se retrai. O primeiro banho de chuva com os filhos dos vizinhos. O chão de cimento molhado da tia que sumiu no mundo. Vou em frente, olho o homem à minha frente, estendo o dedo às folhas verdes sobre a tábua de madeira à minha frente. O homem pega as folhas, enrola num plástico, pega o dinheiro das minhas mãos, oferece mais alguma coisa, recuso e vou.

Acho que você chegou a me amar. Acho que você chegou a me odiar. Acho que eu te abandonei no passado, que te troquei por uma mochila nas costas, nenhum dinheiro e um caminho. Mas no fim da estrada, o abismo da memória. E eu já não lembro mais de você.

Três dias. As folhas guardadas como tesouros dentro da geladeira velha e engordurada. Não tenho coragem. Não tenho coragem. Por trás dos vidros rachados das minhas janelas, o sol forte me queima as saudades e o passado, isso que tento revolver por dentro pra me trazer alguma angústia, alguma culpa, alguma coisa, por favor, agora, já, pra que eu vomite esse frio escuro que me tomou por dentro. Minha mãe me pedindo cuidado pra eu não cair. Meu pai contando piadas na piscina. No espelho do banheiro, oxidação. As manchas amarelas pela lâmina espelhada, pelo branco dos meus olhos, pela vida embolorada em que eu não sei ao certo quando me deixei abandonar. Esse homem magro e empobrecido não estava ali, me olhando. Agora está. Me imita cada movimento e não posso lhe socar a cara amarela de foto velha. Ele deve ter me tragado num cigarro fiado, ter me engolido num copo de cerveja quente. Ele levanta a mão. Fecha o punho. Dá o impulso. E para. Com medo de cortar a mão com o soco. Ou de finalmente terminar a tortura delicada e longa com que planeja me despedaçar.

Estou velho. Todos devem ter morrido enquanto as rugas tomavam conta de mim. Eu nasci quando tudo já estava morto, eu não peguei a coisa viva. Quis as rosas de Cartola, quis os cravos de Coimbra, quis as flores de Woodstock, quis os lírios de Pessoa. E com os espinhos que sobraram, quero o destino de Édipo.

Enquanto esquento a água na panela amassada, me pego olhando os lados. E desespero. Sinto meus olhos se inundarem, minha garganta se fechar. E de repente sorrio. Porque as portas estão trancadas. Porque a casa está fechada. E aqui dentro ninguém pode me alcançar. Ninguém está me vendo, ninguém está me seguindo, ninguém, ninguém está aqui. Há muito tempo que só eu circulo dentro dessas paredes gastas. Estou sozinho e isso me alivia. E o alívio me dói, porque cedo ou tarde não será suspeita. Chegará o dia em que os vidros rachados se quebrarão. E tudo será pior quando invadirem a minha solidão.

Mergulho o primeiro ramo. Depois o segundo. Assim, folha a folha, talo a talo, com cuidado, tentando não pensar. O verde vai escurecendo na água fervente. Sinto o cheiro das folhas subir no ar. Meu coração acelera. Tenho medo. Meu avô de olhos azuis sentado sob o guarda-sol. Minha avó baiana mexendo a comida com as mãos. Tenho medo. Tenho medo. Do cheiro daquelas folhas, do gosto daquelas folhas, da viagem que virá depois. Tenho medo. Faz muitos anos que não me permito. Muitos anos se passaram desde que tudo era festa e eu era confiante e não tinha medo de experimentar tudo, a vida, o mundo, sem passado, sem remorsos, sem saudades, sem saber. Que um dia começa a doer.

Sem sal. Sem sal. O sal deixa a chuva com gosto de mar.

Me escondo no quarto escuro, me esparramo na poltrona barata macia demais. Tento acalmar o coração, fechar os olhos e esquecer. Mas não consigo. Quero bater em retirada, de volta no tempo. E começar a viagem.

Ponho a primeira folha verde sobre a língua. Ponho a segunda, a terceira, ponho todas, tenho pressa. Lambo o verde da folha que tem gosto de nuvem cinza, de céu pesado e tormenta. Depois mastigo, mastigo, mastigo. E vou pensando que eu vivo sozinho e sou infeliz, que se eu não vivesse sozinho eu seria infeliz, que se eu não vivesse aqui eu seria infeliz, que em qualquer um dos lugares onde eu vivi eu fui infeliz, correndo o mundo eu fui infeliz, fui infeliz no passado, sou infeliz agora, a dor é anacrônica, ser infeliz é universal. Sou mochila pesada nas costas, atrapalhando a trilha. E não há nada dentro de mim que valha o sacrifício de me suportar pelo caminho.

O teto se desprende. Começou, começou. E a cadeira se desintegra, e eu flutuo, em direção ao teto que não há, aos espíritos luminosos das estrelas do espaço, mortas há milênios atrás. Começou, eu estou indo. Eu estou voltando.

Pros peitos da minha prima na praia, pro sítio dos meus tios, pro meu avô de olhos azuis.

Pras chuvas da minha infância, o cheiro de cimento molhado do quintal da tia que sumiu no mundo.

Pros dias escuros de cortinas fechadas, o amarelo da lâmpada penumbrosa sob a cúpula do abajur, iluminando a sala de infância e carinho.

Pro prato de sopa quente no dia frio, minha mãe me mandando tomar cuidado com a roupa, meu pai ouvindo no rádio alguma canção antiga que hoje dói.

Pra vista do meu quarto, pra vista da minha casa, pra minha casa, pra mim.

Pra algum dia chuvoso e frio, em algum lugar que não pesasse tanto quanto aqui. Pra a igreja onde eu fiz primeira comunhão, pro velório da irmã que morreu de repente, pra lugares de um passado que devo ter imaginado, e que é melhor do que o que é presente e real.

Pra você, que deve ter se casado, deve ter se matado, deve ter entrado pro serviço militar, tentado vestibular, recebido ordem de despejo, ganhado na loteria, virado freira, ou puta, ou alcoólatra, e esquecido de mim. Você que talvez tenha dois filhos lindos, ou um marido bêbado, ou uma mulher frustrada, ou tome gardenal. Pra você que era magra e tinha as pernas finas, os olhos castanhos e sardas. Que eu deixei me acenando adeus enquanto o ônibus virava a esquina. Pra você, que poderia ter sido, poderia ter sido você.

Pra antes. Antes de tudo. Trancado nessa casa miserável, mastigando folhas verdes de bertalha com gosto do cheiro de terra molhada da chuva de ontem, antes de tudo, dos cigarros, das drogas, dos porres, da fuga, da estrada, dos países, das pessoas que eu conheci pelas estradas dos países, antes, antes de tudo, antes dessa casa miserável com vidros partidos e paredes descascadas, abandonado, esperando que venham cortar a luz e a água, já cortaram o telefone e os credores vão chegar e os traficantes vão chegar e eu devo e eu não tenho, Deus!, Deus!, vontade de chorar, gritar, correr, morrer, Deus!, antes de tudo, meu avô de olhos azuis, minha avó baiana mexendo a comida com as mãos, meus pais conversando sobre um passado antes de eu existir, Deus!, trancado nessa casa miserável, mastigando o passado, mastigando, mastigando, mastigando as sobras, mastigando, mastigando as culpas, os remorsos, as saudades, as lamentações inúteis, porque o tempo não vai voltar, porque eu nunca vou voltar, porque a felicidade só vale quando compartilhada, mastigando a felicidade morta que apodreceu na lembrança em que a plantei, mastigando, mastigando, mastigando a minha vida miserável, a minha casa miserável, o homem magro do espelho oxidado, mastigando os vidros partidos, o sangue nos dentes, mastigando sem poder engolir, sem conseguir cuspir.



 

Imagem: zweettooth

1 Comentário

devir antes dos nomes

Sensacional!!!