A primeira hora do dia era também a mais grave. Quando Ermelinda despertava – todos os dias, pela manhã – ela tomava consciência do contexto desesperador ao qual se encontrava inequivocamente atado. À noite, os seus sonhos, ainda que resultantes da manifestação de processos inconscientes, eram muito mais brandos e suportáveis que a realidade da vigília. E por isso, muita vez, entregava-se em demasia ao repouso. Se, por um lado isso diminuía o tempo de sua existência emaranhada ao quotidiano senciente e claudicante, noutra medida privava-lhe da real possibilidade de ação ante aquela realidade aterrorizante.
E assim Ermelinda enxergava-se presa a essa roda do destino, alternante, dos seus sonhos mais sublimes e também uma miríade de dias intermináveis; os acontecimentos lhe pareciam tão desconexos que furtavam a possibilidade de encontrar, enfim, a linha tênue que pudesse livrá-la de sua condição (sub)(h)umana.
O café da manhã era servido à mesa e os outros membros da família chegavam de banho tomado, vestidos e sorridentes a ocuparem os seus papéis previamente estabelecidos numa conversa amena e agradável. Ermelinda achegava-se então nua, lânguida, com os olhos remelentos, espreguiçava, bocejava despudoradamente; ocupava a saleta anexa à copa, onde o seu desjejum já havia sido deixado. Mastigava e engolia calada o alimento que, se não era agradável ao paladar, ao menos lhe garantiria os nutrientes necessários ao seu sustento pelo breve período entre a aurora e o desvanecer da bola de fogo – mísero e desprezível rodopio que os planetas insistem em manter.
Ermelinda bem sabia da abundância e da variedade dos sabores oferecidos à mesa da copa – não chegava aos pés daquilo que lhe serviam! – posto que se aventurava em investidas furtivas à mesa da copa sempre que a providência lhe favorecia com uma oportunidade. De qualquer modo, resignava-se a sua sina, evitando o confronto direto com os outros membros da família.
Ela sabia que, apesar da aparente calmaria que transparecia de seus semblantes, dos gestos sinuosos, eles estavam em verdade impregnados de ódio, do rancor, das desavenças não proferidas e contidas por debaixo de suas roupas elegantes. Como se cada manhã fosse uma tentativa vã de reconciliação com a paz de espírito. Dinamite à eminência de súbita explosão. Ermelinda não faria o papel de catalisador ao processo. E assim, poucos (por vezes nenhum deles) lhe dirigiam alguma palavra, carícia ou voto de bom dia. Espalhavam-se, ávidos, em suas ocupações egoísticas.
As recordações primárias de Ermelinda levavam-na a conclusões incertas quanto à origem de sua condição de criatura subjugada, sujeita as mais graves e notórias discriminações. Por causa dessa incapacidade de recordar-se de eventos pretéritos é que, por vezes, questionava se nalgum instante remoto, tivesse ela mesma tomada essa ou aquela atitude equivocada; enfim, escolhido de consciência própria explorar a trilha da desventura dentre tantas as bifurcações que se sucedem ao longo.
Apesar disso e daquilo – do expresso acima – Ermelinda não se sentia, em absoluto, na condição de inferior ou desfavorecida quanto aos demais. Ela tinha também as suas qualidades. Ermelinda era sagaz observadora e conhecedora do comportamento humano. Sensitiva, sabia discernir cada uma delas e podia enxergar através das múltiplas camadas de máscaras nas quais se revestem os relacionamentos.
Ermelinda era sincera, muita vez implacável. Não admitia meias palavras, o verniz da educação ou de cortesia a sobrepujar intenções veladas de influência ou de dominação do semelhante. Ante o mais sutil indício de má índole se afastava rudemente (fechava-se em seu casulo; no seu mundo), vez por outra agredia verbalmente (sibilava), noutras fisicamente (unhas e dentes a seu favor). Enfim, se a loucura de Ermelinda a privava do convívio dito socialmente aceitável, por outro lado essa sua agudeza e firmeza de propósitos lhe garantiam o sono tranqüilo – aquele que se mostra apenas aos justos.
Ermelinda era doce; ingênua como uma criança. Sua existência favorecia o fluxo sincero e ininterrupto do carinho e da doação. Amorosa. Apreciadora das singelezas dessa nossa esfera. E, definitivamente, não compreendia como o nosso pessoal – a própria família – preenchia a sua existência de afazeres vãos. Em sua visão mui particular: objetivos de funções secundárias. “Pra que tantas roupas chiques e caras se passam a maior parte do tempo trancafiados em casa? Se não consegue olhar fundo nos olhos do outro? Se já não podem confiar em si mesmos?”
Trocava os dias pelas noites. Certa ocasião, semanas atrás, despertei no meio da noite. Permaneci de olhos fechados e percebi a presença de Ermelinda. A gata havia penetrado no quarto através da porta que ficara entreaberta. Ouvi atentamente o que Ermelinda pensou alto. E aquilo ficou talhado como cicatriz irreversível de punhal em minha alma. “Esses seres humanos parecem-se com rinocerontes; eles roncam enquanto dormem!” Enfim, tive de matá-la.
segunda-feira, 1 de novembro de 2010
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Rinoceronte
autor(a): Jorge Xerxes
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1 Comentário
Para comemorarmos juntos o segundo ano do website “Palavras Órfãs de Poesia: O Que Restou” www.jorgexerxes.wordpress.com é que eu gostaria de compartilhar com vocês desse espanto quanto a condição humana. Espero que apreciem o conto. Forte Abraço e Luz, Jorge X
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