domingo, 14 de novembro de 2010

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TEENAGE WASTELAND

Quando a criança morreu,
Seus assassinos colocaram novos sapatos vermelhos de bico fino
e marcharam rumo às universidades, aos escritórios, aos supermercados, ao saco escrotal da psicologia moderna
Ao cu do Freud com Jung aplaudindo.
Já vinha a noite já, mas ainda havia luz
E os bares vendiam cerveja
E nossas mães estavam longe
E eu estudava ainda...
Ó crepúsculo insano e vermelho
Ó outubro estranho
Ó rio de ratos e baratas deste chão
Ó corda velha de varal que não arrebenta
Um real o metro e teus sonhos todos dependurados
Ó Rogério, gnomo mais triste do mundo.
Vai o Sol quente e indiferente
Já pararam para imaginar a casa vazia e suja?
Fogão velho
Botijão de gás novo
Geladeira alienada e vazia
A cama, nunca arrumada
O som, meu Deus
O som.
E o corpo pendurado no meio, sozinho
Já pararam para imaginar ele enchendo sozinho sua mochila de morte?
E no acadêmico as meninas flertavam com os rapazes, que olhavam as meninas.
Já pararam para imaginar o quão vazio era o silêncio?
E na cantina tagarelavam os professores ao jazz de colheres nas xícaras de café.
Já pararam para imaginar as mãos ficando roxas, as unhas, sem meia-lua, ficando roxas, os olhos fora das órbitas e as órbitas abertas ao nada?
Já pararam para imaginar o cansaço, a tristeza, o ódio, o tédio, a sensação de abandono, as unhas rasgando a carne do pescoço tentando em vão talvez voltar?

Um cachorro entra pela porta
(Vem a morte vestida de mosca e põe larvas no menino)
As creches soltam as crianças nas tardes onde as crianças ainda têm mães
(Vem a morte vestida de mosca e tira a música do menino)
Um semáforo fica vermelho, um pedreiro cai do andaime, um marceneiro perde os dedos, um açougueiro mói as mãos
(Vem a morte vestida de mosca, varejeira, e toca alegre a vinheta do vídeo show)
Uma mulher olha sentada da cama
(Vem a morte vestida de noiva e corta as unhas do menino)

Água estancada
Pedra
A letra U
Um urubu
O silêncio
As notas mais graves
Cruz
A barba que cresce indiferente
A cor preta
Um rato morto na rua Procópio Dias
Um carro quebrado
Uma pedra de gelo
Uma camisa do Náutico, do Corinthians, do Fluminense.
Um bom conselho
Você tentando dar comida na boca da Sílvia doida
Um trem azul
Uma voz de criança ao telefone
Um contra-baixo
Um porco magro
Um palco vazio
Um estádio de futebol
Uma caneta
A pasta na mão e o plano de partida.
Nunca mais seremos os mesmos, Rogério.
Nunca mais sorriremos nos bares tomando cerveja e ouvindo o clube da esquina.
Nunca mais voltaremos à nossa velha casinha velha
“Houvera tantas madrugadas em vão nessa esquina?”
AAAhhh!!! Quebra o gelo, irrompe o escuro, explode o delírio,
Mas volta parceiro, nem que seja em sonho.

NOITE

Já se fecharam os bares
As dentaduras repousam nos copos
Uns casais que se amam e outros que nem se amam tanto assim fazem amor já
A lajota vermelha ainda está fria
Mas teus pés descalços já nem a tocam mais.
Já podes voar, parceiro
Indiferente às aranhas do mal que inundam a casa, aos ratos no chão.
Já podes voar, parceiro
Indiferente à noite densa que escorre pelas vidraças, sobre os bueiros, nas paredes dos prédios de apartamentos.
Teu corpo já não é necessário
Queriam o teu sangue e o teu sangue tiveram
Agora podes te rir desta corda estúpida, deste silêncio.
Da tua mochila de viagem brotam leões selvagens, canários da terra, do reino, uma pantera, um tigre, um cavalo, um punhal, um endereço marcado no papel,
lagartixas que também fazem parte, um natal, um mês de férias, camelos alucinados.
Já podes voar pelo todo
Foda-se o espaço da casa fechada
Fodam-se as reflexões do príncipe de Shakespeare
Teus amigos têm o crânio dormente
Voa que o infinito é irrisório
E o abismo não faz medo algum.
Teu coração brilha feito um Sol estático
Já vêm os anjos do Senhor ao longe e a roupa branca
Desmentindo tudo o que dizem a respeito dos suicidas
Se você fosse japonês seria recebido aí do outro lado com honras,
Samurai do parque Buracão.
Salve Rogério, salve
Segue, segue, segue Rogério, o rio,
Porque as águas dele são tão alvas.
Segue o rio, irmão
Segue o rio
Que os anjos estão chegando,
Com a roupa branca e tudo.

AURORA

Brotam rápido os girassóis do chão
E tuas mãos podem tocar os céus
Te faz sorrir a melodia mais bonita
O rio segue pelo campo de girassóis
Só não deves xingar os anjos
Em breve Van Gogh te fará um retrato com o baixo nas mãos
E as capas daqueles discos bons atrás.
O álcool já não faz diferença
A água já limpou tuas feridas
Deus te quer ao lado
Quer ouvir tuas canções favoritas
Corre o rio como um longo diamante
Já não precisas passar de ano
Já não precisas aprender inglês
Já não precisas perdoar cicrano
Esquecer o amor
O inverno ficou pra trás
Todos os filhos da puta ficaram pra trás
Já te brilha nos olhos uma terra maravilhosa
Segura a mão dos anjos, segue o rio
Olha o campo de girassóis
O Sol já vem
Como nos tempos de Office-boy,
Na estação da Luz.

MANHÃ

E vendo o Senhor Deus
Que ainda lhe faltava luz nos olhos,
Encheu-lhe os olhos de luz,
As mãos de sons,
Contra-baixo de marfim.
O Sol ilumina sem esquentar muito
A voz de Milton Nascimento
Nascente
Caminhando numa terra maravilhosa
Um poema antigo
Uma mulher bonita
Caminhando numa terra maravilhosa
Um carrinho de brinquedo
Uma pomba branca no céu azul
Caminhando numa terra maravilhosa
Longe dos ônibus, caminhões, serras-elétricas, fios de luz que te cortavam os olhos
Caminhando numa terra maravilhosa.

A Sofia está crescendo
Queria que ela sentasse no teu colo e te chamasse de tio.
O Ceará vai ter um filho,
Caminhamos pela Dom Antonio rumo à velhice inevitável
Longe vão os tempos da banda Assis
Longe vão os tempos do Neguinho
Longe vão os tempos do nosso tempo
Agora é só um vazio
E esse Sol que não se põe nunca
Queria fazer um longa-metragem falando da gente.
Queria ter te dado um beijo de adeus
Queria estudar latim.
Queria, queria, queria,
Sempre quis o impossível.

*A imagem é capa do Disco Clube da Esquina de Milton Nascimento e Lô Borges

1 Comentário

L. Rafael Nolli

Daniel, uma bela amostra! Muito bons os poemas. The Who, Milton, uma mosca colocando larvas nos meninos, imagens muito boas.
Abraços.