quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

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Cartas para o nunca II - Edson Costa Duarte






 
















































II


Cinqüenta anos sem nenhuma rasura. O amor tocou de leve meu rosto como uma brisa do tempo. O amor me chamou, cinqüenta anos sem rasura, assim como voz sussurrada ao ouvido ecoando sempre sempre sempre. E eu. Eu estava ali como sempre estivesse à espera, assim desatenta dessa coisa grave desavisada devezenquando sem nenhum aviso que registrasse sua vinda.

Cinqüenta anos sem nenhuma rasura teria sido preciso ter gasto ao menos um pouco de mim para que me fizesse aparência. Acontecença sentenciando em meu gesto marco de início nunca findo. E assim, me conhecendo mais no meu perder-me, desaguar no sentimento, e assim me conhecendo matéria pedra-pomes, rugosidade e reentrância, e assim me sabendo sem rasura, eco que redobra feito sino, me sabendo o sabor da carne mais dilatada que o sopro do espírito.
Dilatei-me. Encontrei-me imóvel mas coisa já maturada. Fruta pendendo exata à espera da mão que a colha. Fruta que pende exata como o número redondo dos anos. Cinqüenta sem rasura. Nenhuma. E assim, sendo mais que mim, tornei-me exuberante geografia a revisitar o tempo. E em sendo assim, tornei-me mais gosto, mais suculência, menos máscara.

Anos. Teu gesto gravado na memória. Coisa peremptória e intensa e gasta. Sem de fora. O que significa o teu olhar assim coisa vasta? Cinqüenta. É preciso que eu diga: rasura nenhuma, nem arranhado, nem risco. Cinqüenta anos de sua sólida e úmida presença.

Nada de brancos da memória. Nada de desistências, nem de vazios de angústia. Só algo assim ajustado justo exata exatidão paixão da fala. Cinqüenta anos. Só a intensa presença da memória do tempo. Sem rasura.
 









Do livro "Cartas para o Nunca" (2010)







 
Imagem: fragmento da foto Nasa 50 years old







1 Comentário

SÔNIA PILLON

Que belíssima definição para 50 anos... ajustado justo exata exatidão paixão da fala... intensa presença da memória do tempo...
Magnífico!!!