sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

0

Cartas para o nunca III - Edson Costa Duarte

III

Sairá da minha entranha como um grito. Confesso que sim, que tenho uma ligação atávica e intrínseca com a crença. Eu acredito, mesmo que a morte súbita venha, ainda que sendo uma notícia improvável e estranha. Acredito sim, eu tenho esperança, tenho ainda muita crença na impossível felicidade da espera.

Mesmo que levem meu corpo para a prática do encanto, mesmo que eu esteja ausente, ainda assim eu acredito que acontecerá alguma coisa que me livre do susto. Por isso, preparo isento as toalhas de linho. Que o jantar esteja posto, que tudo seja assim luminoso e cordato.

Mas sei que há dores pungentes, que há coisas que pulsam pululam feito feridas incuradas num tempo, que não nada machuca e fica impune embora tudo continue no seu ritmo lento e implume assassinar as idéias, antes de virem à vida. Não se pode mais acreditar que os amores sejam impossíveis.

Não existe isso do pensar, ressonar, cochilar entre o que se faz e o que se retém no tempo. Todas as coisas estão em alta. Remessa de dólares ilegais para o exterior. O corpo do morador de rua foi encontrado perto do prédio.... Não se pode sempre encontrar as coisas mortas e não se fazer nada. Ao lado do corpo havia um pedaço de pau. Seis morreram e nove continuam internados. Não é mais possível continuar encontrando pessoas mortas, dramas sem fim, sob a mira da metralhadora no sul da Rússia. Não é mais possível ouvir isento: segunda noite de angústia.

Não quero mais ouvir todos estes dramas. Não quero mais me eleger fazendo promessas impossíveis de serem cumpridas. Não quero mais recusar salvo-condutos, estar independente, invadir os locais à força. Não quero mais dizer sobre o horror, doença mental pior do que qualquer esquizofrenia. Não quero mais aumentar o ódio de pensar tanto em tudo isso.

Que eu também tenha direito ao grito. Que eu também possa acreditar na prática do encanto. Que seja possível o instante em que eu toque, assim desatento, outro corpo, e que o milagre fácil do desejo enfim se faça.



Do livro “Cartas para o nunca” (2010)








Imagem: pintura de autor ignorado



Seja o primeiro a comentar: