Nasci e moro na "cidade mais feliz do mundo". Assim disse a revista americana "Forbes" em 02.9.09.
Não satisfeitos com isso, meus pais fixaram residência no bairro mais democrático e movimentado da cidade. Parece que todos moram aqui, não há como não encontrar um conhecido numa esquina qualquer – a qualquer hora. As avenidas principais parecem ser o grande quintal de todos nós, moradores.
Descer pelo elevador é simples, embora more num prédio que é metade comercial. A gente acaba se acostumando com o esquisito tom que carrega: em uma mesma viagem leva pessoas arrumadas ao médico ou ao dentista, carrinhos de feira e seus donos vestidos modestamente, corpos quase nus em busca de boas marés.
Ônibus que vêm dos subúrbios trazem banhistas que desconhecem nossa história e dela prescindem para se divertir. As águas salgadas curvam-se a eles, numa acolhida generosa.
Gosto de caminhar por lá. Nunca da mesma forma o dia amanhece, mas sempre gentis são os pescadores do posto 6, exibindo seus pescados ainda nas embarcações. A claridade chega aos poucos às escamas e elas brilham intensamente. Sinto-me numa cidade do interior.
De um banco qualquer por ali eu viajo no tempo. Escrevo o que penso e o que imagino: é meu dever de casa fazer uma redação sobre o local.
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Estou sentado embaixo de uma palmeira em Sacopenapan, ainda entre os pescadores, nesta enseada fora da barra. Esse nome significa o barulho e o bater das asas dos socós que habitam a região. Sou um soldado português e minha missão é defender a cidade. Os franceses já não vêm por aqui, abandonaram Cabo Frio no início deste século. Estamos em meados do século XVII e os piratas e contrabandistas são o perigo maior.
O Rio de Janeiro está na rota Luanda-Buenos Aires e tudo se dá através de nosso porto: os Caravelões (menores que as caravelas) ligam essas cidades numa viagem de dez a quinze dias. Lá os africanos são trocados pela prata.
Esta é uma linda região e inclui também Ipanema e a Lagoa. Um imenso areal rodeado pelas montanhas recobertas de verde. Vejo adiante vários alagadiços e entre as antigas tabas de índios tamoios as pitangueiras, araçazeiros e cajueiros.
Aqui perto, isolada num pequeno platô, a antiga igrejinha com a cópia da imagem primitiva trazida do Vice-Reino do Peru, daquela aldeia às margens do Lago Titicaca. A santa é Nossa Senhora da Candelária e tem uma fama de milagrosa por lá. Por aqui já tem seus devotos, eu mesmo sou um. Livrou-me de um grande perigo deste meu serviço: o afogamento. Ela protege as águas doces e salgadas, dizem os indígenas, e quem lá vai sem ofendê-las. Eu acredito.
Titicaca é um lago sagrado e tem a proteção da Virgem Aimara. Ela e a Nossa Senhora daqui se parecem e aproximam nossos povos.
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Estas são as águas felizes que banham este bairro feliz. O mundo não acabou em 2010.
Estamos em 2020 e fechou-se um ciclo que inaugurou outro, um Outro com características renovadas, baseado em novas premissas, novos referenciais.
Aproximaram-se os povos de nosso continente, renovados por uma releitura de suas tradições culturais. Essa é a força que pudemos compartilhar com os povos de outros continentes: a não rigidez, a mudança constante – a das nossas águas.
A água foi uma metáfora e os deuses nos protegeram. Mas também nós nascemos nesta terra como nossas águas e, como elas, pudemos avançar.
Pudemos nos mover como nossos rios em seus caminhos naturais, desde as serras, sem perder nossas autonomias decisórias, sem nos deixar ameaçar em nossas soberanias nacionais. Funcionando como as águas, fizemos frente à globalização cultural.
Líquidos e moventes pudemos atravessar os fantasmas, fortes como as cachoeiras que nos dão energia colocamos em marcha os projetos nacionais de desenvolvimento.
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Retorno pelas minhas próprias pisadelas mentais ao posto 6. A noite chega e eu sou um estudante universitário deste ano de 2009.
Não tateio a memória nem antecipo a nostalgia.
Leio, olho, imagino, escrevo.
Volto meu olhar sem táticas para a manhã que, sei, se apronta - clara nos montes – um horizonte para os vales escuros.
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Copacabana foi Sacopenapan ("o barulho e o bater dos socós", em tupi) até o aparecimento, no local, de uma imagem de Nossa Senhora de Copacabana, santa venerada no lago Titicaca.
Localizada no posto 6 da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, a Colônia de Pescadores do bairro atrai turistas e oferece peixe fresco a todos. O espaço pertence à colônia Z-13 que reúne mais de mil profissionais de pesca da Urca até o Pontal do Recreio, com núcleos no Jacarepaguá e na Lagoa Rodrigo de Freitas
2 comentários
Sonia,
Um Ótimo Texto!
Um Beijo!
Jorge
Jorge, há quanto tempo!
Feliz com sua leitura, obrigada - que bom que gostou!
outro beijo
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