domingo, 15 de maio de 2011

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numerus clausus



Rita revela bem cedo a paixão pelas literaturas. As palavras dos supremos sacerdotes da escrita atenuam-lhe a solidão do quarto onde estuda. Abriga-se à sombra dos grandes lendo Tolstoi e Tocqueville, Dostoievski e Montaigne, Dickinson e Yeats e o mundo é seu. Menina-prodígio mas sem direito a escolher a área que pretende seguir e com a qual sempre sonhou, porque os pais optam por ela e inscrevem-na no agrupamento de ciências de modo a entrar numa faculdade de medicina, ainda que em qualquer parte do mundo, ainda que hipotequem todo o património. O que interessa é que a filha seja médica, quem sabe especialista no Neurological Institute of New York? Rita, com 19 valores, ingressa na mais prestigiada escola de ciências médicas do país, mosaico de enormes talentos. Orgasmo sem precedentes para os progenitores que vêem resolvidas parte das suas frustrações, sem que prestem a mínima atenção à apatia da filha quando vê confirmada a entrada num curso que pouco lhe diz. Pedro, filho e neto de enfermeiros, noitadas passadas às voltas com canhenhos, renunciando a muito do que é próprio da sua idade, ambiciona circular pelos labirintos dos hospitais civis e exercer medicina interna; por duas décimas vê-se colocado em veterinária e embrulhado num manto de mágoa porque entre o que pretende – curar pessoas - e o que consegue – tratar de bichos - existe o micróbio da desmotivação. Joana sempre quis ser bióloga e investigar biologia molecular e celular, não tem dúvidas e não lhe apetece ser mais nada. A Clássica de Lisboa não a admite por décimas ignorando uma diáspora de cansaço e sacrifício; um pequeno percalço num dos exames finais do secundário e depara-se com um obsceníssimo Não Colocado na página electrónica – qual roleta russa – que anuncia o futuro e que a deixa lavada em lágrimas frente ao computador, engolida por um mar nocturno e sem lua. Carlos, irremediavelmente baldas e pouco dado às letras e às ciências, mais vocacionado para a colagem de cartazes e com uma formidável capacidade de mobilização em período eleitoral, desiste enfastiado dos estudos, tendo completado o secundário a custo e a prestações. Uma fábrica de diplomas de que nunca tinha ouvido falar e que fecha os olhos à incompetência escancara-lhe as portas para um curso que nem sabia que existia e para que servia. Sim, mas qual é o problema? Com várias interrupções e muitos erros de português – mas isso, como é evidente, é questão de importância secundária – lá termina a exótica licenciatura. A mãe orgulhosa telefona para o gabinete onde o filho foi convidado para adjunto, prémio pela dedicação partidária, e repara na subserviência com que as secretárias tratam o seu rapazinho, com tanta genuflexão e tratamento diferenciado. O Sr. Engenheiro está em reunião, dizem, com as sílabas bem pronunciadas. Ele é agora uma personagem influente do partido, ombro a ombro com os fortes e a megalomania do poder e mesmo percebendo zero sobre a assessoria que presta, passa tardes cheias de circunlóquios e conversas de ocasião contribuindo para a feitura de leis que se aplicam aos cidadãos deste país, do qual fazem parte a Rita, anestesista sem vocação, um lamentável desperdício de energia, que em vez de ensinar literatura comparada está incumbida em intubar doentes e assegurar-lhes a ventilação, Pedro, a ganhar miséria à hora fazendo biscastes em algumas clínicas veterinárias dos subúrbios, Joana, filha de empregada fabril, gente sem importância e pedigree, socialmente invisível, segue os passos da mãe, porque o destino lhe destruiu os sonhos, a inocência e qualquer coisa chamada dignidade. O astucioso Carlos com a sua sábia displicência pode mudar de partido, de religião ou clube de futebol e até presidir uma comissão interministerial ou quem sabe uma empresa pública porque o importante é servir o seu país, isto é, servir-se do país, a corruptela e os inúteis.


Luís Galego

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