domingo, 15 de maio de 2011

0

qualquer coisa como um grito...




Unidade de oncologia, poema em alto risco, onde dia a dia, médicos e técnicos de saúde enfrentam gemidos e terapêuticas complicadas. Todos eles suportam intermináveis jornadas nas quais não há tempo para comer, nem sequer para dormir; onde os dias se confundem com as noites. O peso das patologias tratadas obriga a que a fé e a esperança, aliadas ao rasgar constante de novos horizontes, sejam a senha da vida. Ali combate-se o que constitui a segunda causa de morte e toda a alegria é clandestina. Na sala de espera impressiona-me o olhar do rapaz de cabelos ruivos que veste uma camisola de lã branca e que aguarda o seu copo de veneno. Um anjo faz-lhe um afago com os seus pálidos dedos delicados, ele, uma asa quieta, magro, lábios sem cor, com os olhos pisados, perdidos, tristíssimos, magoados, a expressarem qualquer coisa como um grito. Sobre o coração da mãe pesam montanhas, tira um lenço da mala e passa suavemente na face do filho e os seus olhos doces de protectora denunciam um lago triste, meses de silêncio e de tortura, soluços até ao limite de si. Uma senhora idosa olheiras roxas, roxas, quase pretas, com um lenço de cor azul-cobalto a cobrir a ausência de cabelo questiona a enfermeira acerca de uns exames que parece não entender, numa postura de fada envolta num perfume de violeta. Várias mulheres com perucas grotescas que não ligam com a paisagística dos rostos aguardam numa sala que desmaia. Sinfonia de dor e saturação estampada no rosto de todas elas. Um cigano de óculos escuros e dentes de ouro, ar escultural de vagabundo, boémio ou quem sabe poeta, mete os polegares trémulos por baixo das lentes riscadas de modo a secar as pálpebras molhadas. Uma rapariga, perfil moreno, lusitano, já longe da inocência, aguarda de pé enquanto uma nódoa de sangue queima a mágica tarefa de viver. Uma outra, olhos verdes, cor do verde oceano, sem peito, os dois pulmões doentes e nervos a tilintar já só almeja ouvir sons marinhos numa concha vazia. Carnes rasgadas, ossos músculos nervos e veias doentes deambulam por aquela passerelle de sofrimento e indizíveis cansaços. E eu, cheio de pudor por a vida me apertar nos seus braços e ainda sonhar em tratar por tu a mais longínqua estrela, sinto um lúgubre arrepio colar-se-me às costas. Sou um simples finalista de psicologia e enquanto eles sofrem eu termino a parte curricular na área da psico-oncologia, estou aqui apenas a observá-los e a registar os seus movimentos, a orientadora diz que tenho olho clínico, estou ali duas semanas, daqui a pouco tudo isto não passou de um estágio, mas dentro de mim estas pessoas insistem em doer, gente frágil que em cinzentas brumas se dilui, sem rede, suporte ou armadura, e eu fico vivo a fantasiar com mundos inteiros e fantásticos castelos,

a vida desta gente que ameaçada por um verme rastejante não é igual à vida da outra gente intangível que dança com a eternidade, obriga a curvar-me a seus pés.

Arrelio-me com um Deus mal informado, irrito-me comigo, com a morte, que é uma puta, com as horas más da vida, como posso ser emproado, imbecil, negligente, como posso lamentar-me, gostava de agasalhar todos estas almas que expiram em tempestades de lágrimas.

Estas palavras saem de mim como golfadas de sangue, perco vocábulo, frases e emoções, pensamentos afogam-se-me na garganta, isto que rabisco não faz justiça à velha senhora do lenço cor de azul-cobalto, que sorri para não ter que expor a sua própria dor.

Nesta hora fria permitam que poise a minha cabeça dolorida nos vossos ombros e afiancem que não é roubada a vida a ninguém da sala de espera. Se a mulher do lenço cor de azul-cobalto e o miúdo de cabelos ruivos que veste uma camisola de lã branca morrerem vou sentir-me ensanguentado,

vou sentir raiva, desespero e nojo.

Luís Galego

Imagem: Frida Kahlo - Frida Kahlo Henry Ford Hospital

Seja o primeiro a comentar: