quinta-feira, 28 de julho de 2011

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CONTAÇÃO - A coluna de M.Mei





A MENINA E O VELHO

Tinha o olhar desconcertante, aquela menina, como todas as outras meninas nos seus dezoito anos. Olhava-o no fundo das pupilas, desafiadora, desvendando os seus costumes mais vergonhosos, os segredos medonhos. O homem na mesa um tanto distante não se mexia, atônito que estava, desde que percebera a menina-lince a observar-lhe por entre as cabeças dos pais. No início tentou disfarçar, tomou uma colherada da sopa, olhou para os lados e fez menção de chamar o garçom. Bebeu um gole do vinho, que desceu seco demais na garganta, assim como a garota a fitar-lhe, que àquela altura já o deixara inquieto, remexendo-se na cadeira, mas sem conseguir desviar-lhe os olhos por muito tempo.

Foi então que sentiu. Era como se aquele olhar lançasse uma comichão de fogo a subir-lhe as pernas e queimar as víceras, insistente. Uma sensação nova, de formigamento inaceitavelmente satisfatório — oh, deus! — muito semelhante às sensações que enchiam de vida a sua juventude. Percebeu que aquele era realmente um dos abalos que permeavam os momentos de êxtase de suas emoções juvenis. Mas não, não poderia senti-lo, tinha diante de si uma menina que mal havia desabrochado para a maturidade e ele (que vergonha!) um velho já no alto dos sessenta de dois anos.

Os pensamentos borbulhavam na mente do homem à medida que a sexualidade aflorava cada vez mais na garota. Era como se de cada poro dela brotasse um colorido maravilhoso, que foi tingindo-a de amor. O olhar cada vez mais inquisidor já havia traspassado por completo toda e qualquer barreira que pudesse ter sido imposta para impedir-lhe de invadir sua intimidade mais sombria. Estava nu, jogado numa cama com os olhos vendados, entregue à espera de ser possuído pelo castigo do próprio desejo.

A menina desviou o olhar para a mesa do homem. O maître completava a taça com vinho. Ela e o homem observaram o néctar rubi escuro tingir o cristal lentamente. Os dois. Como se estivessem compartilhando a mesma mesa, a mesma ocasião. Num gesto muito elegante, uma elegância talvez excessiva do ponto de vista de uma adolescente, ele segurou a taça e fez uma menção de brinde — a você, linda flor — e ela acenou delicadamente, quase que imperceptível, com a cabeça. Será que ela não come? — perguntou-se, ao notar que desde que se sentara à mesa, não tocara um só pedaço de pão. Deve ser essa moda de passarela, e se lembrou da neta, almoçava mato e jantava mato — todas querem ser iguais a cabos de vassouras, umas piaçavas ambulantes —, mas deitou o olhar sobre a garota e pode notar, pelo pouco que se mostrava por cima da mesa, que fazia o tipo fartuda: seios abundosos e ombros largos.

A comichão novamente. Subindo rápido, como brasa. Levantou o olhar que havia se colocado a passear por entre as mesas vazias durante as divagações, e lá estava a maldita a encarar-lhe a face já enrugada. Mas que diabos essa danada quer comigo — refletiu em negação, como se desejasse que alguém lhe desse um tapinha nas costas e dissesse ah, mas o senhor está muito bem conservado, nem aparenta os seus sessenta e dois anos! Mas não, ninguém lhe diria isso, porque a velhos não há quem console em casos como esses. A sociedade não há de permitir um caso de amor entre um quase ancião e uma jovenzinha, a moral não poderia aceitar sem impor todo tipo de martírio.

Degustou o vinho como degustara tantas outras vezes — tantas outras mulheres — pensou e um sorriso de contorno juvenil brotou-lhe nos lábios. A menina certamente notara, porque se aprumou na cadeira como um sabiá novo depois da chuva, tomou o copo com um suco cor de beterraba nas mãos e delicadamente, como quem tem toda a eternidade ao seu calço, colocou o canudo entre os lábios pequenos e rosados, num ritual covardemente provocativo e quase diabólico para com um senhor sério como ele. Mas ela, em sua malícia inerente a uma maturidade crua que começa a minar pelos sentidos, sabia que aquele senhor tão honrado tinha um segredo. Um não — muitos. Pois já os havia desvendado desde o primeiro momento em que pousou seu olhar sobre os dele e perfurou seus mais profundos pensamentos. Sim, ela sabia. E por isso levantou-se de sua mesa e o convidou com um aceno quase insignificante.

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A noite parecia chegar morna e vagarosa como as tantas outras dos últimos dias, e algumas estrelas já rebentavam no céu azul pálido a escassas nuvens. Nenhuma brisa, ao menos um sopro. O ar úmido e pesado estava propício para uma caminhada no calçadão, e adiantar a hora das vontades de Diana seria ao menos proveitoso para sua saúde que o tempo fazia sentir. Calçou os tênis brancos impecáveis, tão limpos como se tivessem sido retirados da caixa naquela mesma hora. A cachorra pulava irrequieta e quase lhe impedia a passagem, todos os dias o mesmo ritual: bastava o dono calçar os sapatos para o bicho atingir o êxtase total, chegava a pular mais de metro, um cão que tinha menos de quinze centímetros de altura.

Já no calçadão, o mar pareceu-lhe manso demais. Um manto verde-esmeralda, reluzente, refletor das luzes de uma cidade cheia de vida, cheia de histórias, cheia de amores. O mar, esse velho vezes manso vezes agitado, animal dócil e traiçoeiro, absorvia a beleza que observava ao seu redor e a devolvia em vida. Então o homem se deu conta de que era como esse mar: um velho que amava o belo, nutria-se dele para continuar pulsando a essência. E lembrou-se da menina do restaurante, tão bela aquela doce e luminosa garota, que o despertara de sua calmaria para a vida. Sentiu aquela comichão subir-lhe as pernas e queimar-lhe as entranhas — alto lá, Diana, que preciso de um ar para o coração! De fato o coração já não era o mesmo que queimou inédito naquela mesa de restaurante há dois anos, quando a garota com seus dezoito anos o encarava com seu olhar desconcertante. O pulsar era mais lento, descompassado e... triste.

Recordou o suco quase negro e os lábios rosados tocando de leve o canudo, os seios fartos arfando dentro da camiseta verde como o mar daquela noite. Como ele. Um oceano calmo demais, débil, um pouco vazio até. O olhar da menina a instigar-lhe sobre os segredos dos caminhos da maturidade que começava a percorrer causou-lhe tormentas de assombro. Recordou o convite e o depois. E as tormentas.

Vieram-lhe como flashes: a perseguição consentida, a palpitação do proibido — ora, vejam só, aventuras de adolescentes — um banheiro com perfume de eucalipto (a água desinfetante, talvez); e como cenas exibias em câmera lenta, como se nunca fossem terminar: a menina a examinar sua juventude no espelho volta o olhar para a porta onde agora o homem a admira. Ela gira o corpo e debruça na pia num gesto quase sensual, não fosse a falta de vivência nas vias da sedução. O homem atira-se sobre a garota, lambendo-lhe os seios duros e tão jovens como dois pêssegos quase prontos. E a possui ali mesmo, no banheiro daquele mesmo restaurante onde há pouco jantavam em mesas separadas, ela acompanhada de seus pais, e ele de um Château Léoville Las Cases 2002, vinho encorpado de final longo e persistente comprado em uma de suas viagens à França, por recomendação de um amigo, para ocasião como aquela — um jantar solitário para uma comemoração refinada de seu aniversário de sessenta e dois anos.

Tudo foi muito rápido. Impressionara-lhe o fato de que ainda conseguisse uma resposta de seu corpo. Aliás, o corpo. No espelho, aquele corpo abraçado ao da garota, duas figuras completamente destoantes em tons, texturas, odores, sabores. Apesar da forma física mantida pelas caminhadas diárias e a fisioterapia, a nudez era implacável: pois então, olhe aí o que você achou que poderia esconder de si mesmo! Vestiram-se sem trocar qualquer palavra — não tinham, aliás, trocado qualquer ruído desde sempre. O homem olhou a garota e de seus olhos rolou uma lágrima preta, tingida pela maquiagem — tão forte para a idade – pensou enquanto enxugava sua face com o lenço de linho, com as iniciais bordadas, que tirou do bolso. E foi nesse momento que a ressaca cessou e o mar voltou a ser manso. Saiu fugido do banheiro, deixou duas notas de cem reais em cima da mesa, deixou a garrafa do vinho especial pela metade.

Vamos, Diana, que o mar começa a se revolver — e puxou a cachorra que cheirava um pedaço sujo de coxinha frita no chão. Caminharam por vinte minutos intermináveis, os segundos pesavam a cada passo sobre seus ombros. Foi então que sentiu uma leve garoa na face e a lembrança da lágrima negra. Amarrou a cachorra em um telefone público — fique aí quietinha — e desceu os degraus de pedra que terminavam na praia. Quando a planta dos pés entrou em contato com a areia sentiu-se como se fosse a garota tocando sua pele, tamanha a aspereza do tato. Caminhou lentamente em direção à água verde-esmeralda e fitou-lhe como há dois anos alguém o havia fitado, enquanto ficava completamente nu. Lembrou-se do dia em que, com sede de vida, roubara uma beleza ainda crua. Entregou-se ao mar, e o mar nada mais refletiu naquela noite.




Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com .


1 Comentário

Jéssica Kruck

Achei bonito :)