quinta-feira, 25 de agosto de 2011

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"Desconhecimento"


DESCONHECIMENTO

“Tanto tempo
Como nunca mais, eu penso
Como um samba de adeus
Com que jeito acenar
O meu lenço
Branco
Quanto tempo
Pode durar um espanto
Onde lançar a voz
Tempo
Tanto”
Como um Samba de Adeus,
Chico Buarque e Caetano Veloso
Desconhecido. Era como seu rosto se apresentava a mim naquele início de manhã chuvosa. Apesar de que, de alguma forma, parecia-me familiar. Mas o meu olhar, quando percorria seu contorno ou desenhava-lhe as rugas, meu olhar acabava por desconhecer aquele rosto. E vez ou outra eu me perdia num pelo de sobrancelha desarrumado, numa curva de nariz outrora reconhecida em meu próprio espelho, ou numa cicatriz rosada no lóbulo da orelha. Era como se redescobrisse, reencontrasse aquele homem que jamais vira antes.
Eu, de longe, observava todo o ritual que o envolvia: pessoas que se aproximavam e o tocavam, outras que meneavam a cabeça em expressão dolorida; uns que choravam juntos, outros que se conservavam inalterados. E então todos, sem uma exceção que fosse, desviavam-se à mulher que permanecia incondicionalmente ao seu lado, pálida e cabisbaixa, e a cumprimentavam como em reverência. Ela, que tantas vezes semeara fogo nos olhos, que tantas desafetos cultivara por inúmeras causas em sua juventude, naquela hora conservava-se afável em despeito da evidente tristeza. Erguia a face em respeito a cada um que vinha prestar-lhe homenagens e deixava fugir-lhe das pálpebras uma ou duas lágrimas, para então mirar os próprios pés novamente.
Ao contrário do homem, a mulher de olhar desconsolado não se apresentava a mim como estranha. Muitas vezes tinha reconhecido em mamãe aqueles olhos parados, profundos, como se vivessem em outros mundos que não o de suas órbitas. Para ser justo, aquele olhar havia se ausentado de tudo desde que Toinzito fora encontrado na praia, com um buraco de 38 no meio do peito e um caranguejinho grudado nos lábios. Era como se os olhos tivessem sido abandonados para sempre junto de meu irmão, e seu corpo se obrigasse a continuar pelo outro filho e pelo marido.
E assim, durante três anos até esta manhã chuvosa, tentei resgatar em mamãe os olhos e o viço de outrora, duas jabuticabas envolvidas em fogo a rodopiarem em exclamações, censuras e maldições toda vez que surpreendia a mim e a Isabela na sala dos fundos a ouvirmos LP’s de papai e nos tocarmos sob as roupas. Só que nesses três últimos anos não havia Isabela que me visitasse, e eu mesmo já não vivia na mesma casa daquela salinha de LP’s ou de mamãe. Eu a havia deixado por um casamento precipitado (um pretexto, talvez), e Toinzito por um uns gramas de pó. E papai sempre fora um tanto calado demais, egoísta demais no que dissesse respeito a qualquer emoção que fosse. Então, nestes últimos três anos, cada um lidou com sua dor da maneira que lhe coube.
Nunca pensei que fosse encontra-la da mesma forma que a encontrei quando Toinzito descansava a sorrir naquele caixão. As jabuticabas abandonadas pelas chamas, o corpo esguio e quase sem vida, e a cabeça a levantar em contadas lágrimas e a baixar novamente a cada abraço sentido. E eu sempre longe, observando à distância, reconhecendo o choro reprimido de mamãe a lhe preencher a alma para que todo o corpo se sustentasse. E foi assim, desta mesma forma, que me escondi das condolências nesta manhã chuvosa. Não porque não sentisse, mas porque sentia demais. Sentia pela minha dor e pela dor de mamãe. Sentia por não poder abraça-la sem ter que encarar aquele homem desconhecido, e me reconhecer nele, pois nossas dores eram as mesmas.
Por este motivo, e nenhum outro, escolhi o canto abandonado da sala de velório, ao lado das coroas de flores de gerânios e samambaias, enviadas pelo magazine X, o supermercado Y e o vereador Z. Ali ao lado das homenagens que ninguém olha, ou se olha, atenta-se antes aos remetentes que a um corpo mal vestido e jogado no canto do sofá. Mesmo os que da minha presença se apercebiam e me analisavam a face, mesmo estes passavam, desavisados de minha condição, já que desde que Toinzito morrera eu me trancara em minha própria existência.
E talvez o verdadeiro motivo de mamãe ter esquecido o olhar para sempre naqueles tempos foi a vida ter-lhe arrancado não um, mas seus dois filhos. Ou de um deles ter se entregado à morte, enquanto outro se entregava ao esquecimento. De qualquer forma, aquela mulher de felicidade e nervos que afloravam aos poros murchou desde que foi obrigada a colocar à mesa apenas dois pratos, desde que a rotina de lavar roupas durou duas horas e não mais a tarde toda, desde que a televisão das tardes de domingo deixou de transmitir o futebol. Papai não gostava de futebol.
Assim como aquele homem ao lado de mamãe, que certamente não gostava de futebol. Gostasse, não teria se rendido à depressão, estaria torcendo por seu time ao invés de atirar-se do pontilhão que interligava dois lados da cidade para estatelar-se lá embaixo, na autovia. Aquele homem que eu não conhecia, não entendia o semblante, pelo qual não sentia compaixão. Mas que desvendava minha dor com sua presença, percorria meus anseios com seus dedos estáticos, desfigurava-me com a profundidade de seus olhos fechados. Aquele homem me revelava como se eu fosse parte dele. Ou ele de mim.
E minha mãe sabia. Observava-me, entre um cumprimento e outro, uma reverência e outra antes de baixar novamente a cabeça. E seu olhar continuava perdido, profundamente distante, e às vezes eu mesmo duvidava se era a mim que ele se dirigia. De qualquer forma, fosse a mim ou não, aquele olhar transbordava um desapego intenso da vida, uma rendição verdadeira ao destino, um esquecimento que se encerrava na beira d’alma.
Eu apenas observava. Comedido pelo receio. Receio do total desconhecimento daquele homem tal como ele se apresentava ali, de sua face e seu corpo, mesmo que por algumas vezes me parecesse familiar. Estranho como tal sentimento impreciso se apoderava de mim, uma faca de dois gumes, uma história de dois fins. E então eu o analisava por minutos, concentrado em seus cabelos acinzentados e suas mãos sobrepostas, nos sinais das amarguras em torno dos lábios, na sobrancelha ainda desarrumada. E, mesmo que pudesse distinguir um ou outro aspecto em minhas memórias, aquele semblante tranquilo e leve – e arrisco-me, carregado de felicidade – não me era comum.
Creio que seja por esse motivo que, mesmo sendo ele um defunto, encarar seu rosto não fazia meu sangue pulsar mais (ou menos). Os sentimentos borbulhavam e incomodavam mais pelo que minha postura causava sobre mamãe, que pela presença dele. A mim, era como se aquele homem a alguns metros de mim não existisse, como se o fato de estar morto não tivesse qualquer efeito sobre minhas impressões, pelo simples motivo de não o reconhecer. Um indigente em minha história. Mesmo que fosse ele, o desconhecido, aquele homem desta manhã chuvosa de abril. Mesmo que fosse o meu pai. Eu ainda não o reconhecia em seu ataúde.
Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com .

1 Comentário

Anônimo

Muito bom o texto!