NA CARNE
E não era ninguém quando morri. Apenas o espaço vazio da porta e a dor na barriga. E já os olhos me iam com imagens de indefinição.
Um rosto estranho. Pálido. E um estampido a me arder a carne. Segundos. E só eram os pés dele que via.
Sapatos de brilho singular. Minha cara de espanto, distorcida no verniz dos pés dele. Meu olho que se alarmava à proximidade do cano que descia até minha testa. E então o nada.
Mas por segundos...
Ele não sabe. Nem imagina. Mas estou nele. No seu passo firme e convencido. Agarrado em sua carne. Mesmo que quisesse não conseguiria.
Ele é saboroso em sua maldade incondicional. Alimento pra minha fome etérea e eterna.
Exala confiança enquanto pelas brechas e poros da sua carne, invado sua sanidade.
Acha que não sente nada. Pensa que me esquecerá em segundos. Mas meus dentes devoram seu cérebro e suas memórias.
Acredita que no bar, encoberto pela fumaça e álcool se livrará do meu corpo a mastigar-lhe.
Belo em sua boca o álcool que escorre. Etílico elemento. Vejo seu coração. Pulsando... pulsando.
Um carro estaciona e somos levados. O homem gordo cara fechada pergunta “deu tudo certo?” “Sim.” É a resposta. Então um envelope é trocado de mão. Dinheiro que recende a sexo e drogas. Os bolsos estão cheios. O carro nos larga e a algumas quadras meu assassino entra no ônibus e senta para morrer.
Não há inferno nem demônio. Há apenas a fome. Todos têm fome. Tudo tem fome.
A humanidade é um termo... conceito muito limitado. Dirão que não sou humano. Que sou um demônio. Não sei. Sei apenas que este coração tem o gosto de toda minha fome. Todo o meu desejo.
Provavelmente ele sentirá dor. Abrirá a boca em grito mudo, mãos no peito. Falta de ar... O corpo debatendo-se no chão.
Na minha boca, escorrendo, o suco amargo e delicioso de todas as mortes.
Ronie Von Rosa Martins é especialista em Literatura Brasileira Contemporânea e também em Linguagens Verbais, visuais e suas tecnologias.
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