terça-feira, 16 de agosto de 2011

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O QUADRO









O QUADRO


Antes de entrar ele pressentiu. Frio estranho lambendo o corpo. Arrepio bolinando a alma. Com calma. Mesmo assim entrou. Sempre entrava “mesmo assim”. E naquele dia resolveu ver. Observar. Coisas que não via. No cérebro, algo sempre tilintava. Sinal? Tinha sempre a sensação de que sua visão não era boa. De que não conseguia ver tudo. Olhava. Olhava muito. Para tudo. Traços, rostos, relevos, linhas, cores, ângulos, texturas, estilos, épocas, conceitos. Mas algo dentro dizia que alguma coisa estava errada. E ele decidiu.
“Não é grande coisa,” um amigo dissera. O outro “que era mediano”. Alguns, por falta de propaganda, mídia e badalação, negaram veementemente a intenção. “Não vale a pena, o tempo, o movimento, as cores, o comentário.” Mesmo assim ele foi.
E era estranho. Intrigante. O espaço em que o quadro o corpo em tinta e traço olhava. Espaço de brancura iluminista. Claridade anormal cegante-sufocante. Paredes nuas, explícitas. E no meio de todo o nada - ele. O quadro. Único.
Mão e olho. Rosto sugerido, cores infringidas. Delirante pincel. Escuro e sombrio. Sombra e cor além da luz. E o olho branco. Vago. Profundo. Janela. E da mão um furo. Outro rasgo. Outra brecha.
E as linhas e os cortes. Traços que separavam ou juntavam pedaços. A imagem em construção. Destruição?
E então a visão. Toda. Furiosa. Facho, fluxo. O olho no olho e ambos dentro e fora. O quadro e o corpo. Simbiose. Mergulho, naufrágio no olho. Afogamento. Dança erótica e lasciva com todas as sereias recusadas por Ulisses. Todos os caminhos e dimensões sensoriais, corporais e táteis experimentadas por Alice. Valsa fantástica a bordo da nau dos loucos. Tradução-devoração do verbo insano, do verso da não-razão. Antonin Artaud cuspindo saliva e sangue no buraco mágico dos Taraumaras. Explodindo e desorganizando-se em corpo e mente. Criação de outro mundo. Vocábulo do além gramática. Janelas e mais janelas ao suicídio do lugar comum. Do senso comum. Corpos em queda. Livres. O incêndio de todas as roupas, de todas as máscaras. Nero bondoso e fantástico e sua lira. Insanidade mortal. Fogo. Roma e Tróia. Incandescentes.
Na pausa que se fez. Do olho que ao fechar-se o mundo enclausurou, rio de sal aos poucos vazou.
Dor, prazer, júbilo, razão?
Ninguém soube ou sabe ou saberá motivo, idéia, intenção. Mesmo assim ele levantou. E pelo olho do quadro nova direção.
Da janela aberta em braços e asas saltou. Final. Ponto



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