terça-feira, 13 de setembro de 2011

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Briga


Ambos tinham nas bocas o gosto do sangue. Do outro. E o mundo não era mais o mundo. Era apenas o cheiro insuportável do sangue e a adrenalina que bombeava a loucura que expressava a fúria de morte e destruição em seus olhos.
Eriçado o pêlo, olho no olho, praticavam movimentos tensos. Ódio e fúria deslizando em forma de sangue pelas feridas abertas.
E os movimentos pareciam coreografados por um louco... primeiro lento, lento...rosnados, corpos tremendo, e em seguida se atracavam com tal fúria que já não pareciam dois. Mas um. Amalgamados em nova criatura. Ortro, criatura forjada por Tiphon e Equidna.
Cães. Animais. A irracionalidade em sua mais alta potência. Estupidez em forma de saliva a escorrer pelo queixo.
A razão não tem espaço, sentido nem poder algum. O instante é mitológico. A morte é a anfitriã da dor. Nossa dor. Pois embriagados pelo gosto da própria carne e sangue os animais já não sentem. Corpos esqueléticos, fome secular.

O terreno baldio é a arena. E o silêncio externo é a platéia. O pavor do mundo, representado pela estagnação de todos os sons exteriores ao combate.
Dentes enormes e assustadores rasgam e cortam e já não há uma cor original. O escarlate-sangue assumiu. Todos os poros e pêlos foram tingidos e encharcados. Sangue.

Não haverá paz enquanto não houver morte. É uma certeza. 

Sempre assim. A morte é uma imposição para a paz. O terror é uma imposição para a paz. O medo.

Para além do combate e dos cães. Também nós somos filhos de Tiphon, o deus grego da seca. Dos nossos desertos e silêncios e de todos os nossos segredos mais íntimos; e de Equidna, a mãe de todos os monstros. Mulher e serpente. Antes de sermos e vermos o outro, em suas diferenças e similitudes, antes de no outro vermos a nós mesmos, somos Ortro. Sempre o cão. De duas cabeças. Sedento. Ávido pelo sangue e carne alheia.


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Ronie V.  R. Martins é especialista em Literatura Brasileira Contemporânea e em Linguagens Verbais, Visuais e suas Tecnologias.

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