quarta-feira, 14 de setembro de 2011

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A NASCENTE 19,20 - JANDIRA ZANCHI




A NASCENTE

I -  ASCESE


19.

- O amor ! -  rezou Alonso na multidão do Sol.
    Rodeado de toda a luz de seu reino, o Apolo  suspirou. Que partisse de seu peito de valente um queixume nos campos de ouro, não era aprumo para espanto. Garboso de sua noite, foi na ausência de suas estrelas que seu coração feriu.
    Na cidade dos homens da terra Alonso criou grande ventura, daquelas que levantam mesmo os que se perderam nos murmúrios do tempo. Eram homens e mulheres envoltos nas espumas da Nascente, obrados no trabalho do solo, agraciados nas orações da face oeste do deus, dignificados nos deleites da arte e do conhecimento, amaciados nos prazeres da carne e das águas. Eram constantes vaivens de sorrisos e afabilidades, eram retornos e eminências de alvoradas, era um renascimento da percepção do plano brilhante da existência, eram mesmo os instrumentos que, à mercê de seu maestro, levantavam-se para a primeira sinfonia.
     Alonso arrancara de si os meios de expandir a depuração de seu meio. Mas fora originado na parcimônia da luz, no seu princípio selvagem, na proximidade da larva. A derivação de sua estima o levara para a adoração de Apolo, a delineação da forma aprumada e solvente de ácidos corrosivos e ineptos. Porém, quando encontrou os meios de arquitetar o deus, percebeu, magnânimo – e mesmo , dizia-se, extravagante -  que não extrairia de si os meios de o louvar.
     Durante algum tempo o orgulho do efebo pousou na sombra. Entendeu que muito do seu esplendor, e, porque não, de sua extraordinária suficiência, eram fluídos florados na lua. Enviesado, fez inúmeras consultas ao astro e, não fosse tão puro, teria jurado alguma vingança.
     Para o deleitarem ao prumo do rio, distraindo-o dessas efusões sem leite, as ninfas da Nascente ensaiaram os bailados vespertinos, sustentados de diáfano limo enrugado de margens, ornados de transparências e evidências, na lira os cânticos de suas vaidades.
    Era vão. Assumido de sua prontidão, o Príncipe jurara-se uma Rainha do Sol. Tão condimentada à boa forma quanto ele, mas, que trouxesse nas vestes um rumor de cadências ardentes, pairando nas faixas de luz , na freqüência da plenitude e que domasse, na terra, o timo das feras e as confidências dos anjos.
      Chegou a estreitar os perfumes da corrente, a enfiar-se nas profundezas das águas. Não que o estimasse, é que sonhava enfeitiçá-la ao caldo dos brios da larva. E preparou-se. De tanto medi-la já sabia como não se derreter ao pedestal. Queria carregá-la no triunfo da sina, arranjá-la de feitos e fatos, amá-la como fruto merecido por aquele que colheu o lume da paz.
     Queria, ao fundir-se, continuar a ser. E não era falso admitir que preferia continuar Rei .
-         Como poderei fascinar-me e criar fascinação ?
   E o noviço do amor revolvia-se ao sabor do fruto. A cada pedaço de um tempo, argumentava um novo juramento. Nos seus falsetes de contratempos iluminou-se ,enfim:
- Amar é principiar pelo princípio de si e se afastar e se dirigir. É para sempre ir para muito além. É o ventre, e não o rebento.



20.

       A genuflexão do tempo já havia ditado seu império quando Alonso esquadrinhou-se na busca. Torneou muitos mistérios nas redondezas do bosque, esculpiu incontáveis medidas e parcerias para os trabalhos. Não deixava de crer que o amor exige muitos modos, inúmeras facetas, cores e artifícios, pecados amassados na seda e no ouro, jasmim e rosas nas manhãs de muito vento.
       Às palavras deslizava com muita convicção, procurando para cada vocábulo uma entonação condizente com os frutos da Ave. Tornou-se credor de qualquer enjeitado que se fizesse poeta, que colorisse alguma pompa em telas aéreas ou em fados amassados. Armou seu palácio com muito cerco de justeza, com exagerados pormenores de saliências, murmurando com enfado a qualquer prega que condissesse ao brio da indolência satisfeita.
      Enquanto freqüentava-se com tanta sofreguidão igualmente perdia-se em passeios espevitados, aprofundados nas colinas, derramados pelas planícies. Consultava os elementos com tal retidão e armava sua sombra com tamanha solenidade que só conseguia uns risinhos desabridos nas correntes de aragem e calor.
     No princípio dessas ramagens foi tido pela alma do lugar como um deus que se esvaziava em angústias quase poluídas. Folharam-se, as árvores, grandes segredos, sussurrados com quase ironia dos desatinos de Apolo.
-         De que provem o ardor do belo efebo?
-         Amofina-se na esperança da deusa, no amor de sua perfeição e destino.
-         Mas se nem a conhece...
-         Pressente-a no aroma das plantas, em algumas partículas pratas do verde riacho, na correria das andorinhas nos dias de muita luz...
-         Então de fato a sabe...
-         Pois se a ama...
-         Consulta-se, a bela, com aquele que se ergue para além da liberdade da forma.
-         Mas destina-se ao dileto da rocha.
-         E então já ama..
      E recolheram-se as tais folhagens. Cientes da entonação do mistério fizeram cortejo de cinzas por conta do ardoroso efebo. Enciumadas, começaram a enamorar-se – como tantas outras – do negro dos seus cabelos, das pestanas tão longas, das formas precisas do corpo moreno.
    Submissas, começaram a anunciar, num contínuo de vento e volume, o pedido do Príncipe. Em poucos dias foi notícias em todos os bosques irmãos a ansiedade do melhor dos semi-deuses.  Já estava sendo venerado, como córrego de boa fortuna, o encontro do belo com aquela que saíra das mais brancas nuvens.
-         Que a Água envolva o cristal de luz – suspiravam em seus brios vespertinos.
-         Que desmanche em seu redemoinho a estrela do dia...
-         Tão maravilhosa fortuna para os seus filhos...
-         Tão suaves os passos em torno de nossas raízes... – e sonhavam, até mais do que Alonso.
  Este, quando se percebeu da mansidão dos arvoredos, não se fez de rogado. Acostumado a arredondar as ordens e os destinos dos homens enfiou-se nos mesmos modos com os viventes da brisa e da seiva. Exigiu-lhes pronta prontidão de execução e arte e felicidade. Que muito se perturbassem no préstimo do encontro de sua querida. Como a queria ? E precisava explicar-lhes sobre a mais linda, mais doce, mais sabida, de ouro e azul esculpida, enfim, sobre ela nadavam as aves suas melhores fases e vôos, ajoelhavam-se de seu encanto os mais estimados sábios...
-         Pois então já sabe...
-         Que consulta o gênio do bosque ? – afirmou o orgulhoso Príncipe. De suas rendas já privei no oráculo de meu mestre.. é de nós formado, um diamante da ascese da face oeste.
-         Um seu irmão de sacerdócio – aventurou-se um carvalho, já enfadado.
-         Enfim...
-         Abriremos a trilha, mas apenas na manhã da sétima retomada do quarto do branco astro.
-         Assumirei para as filhas de todas as suas filhas a imantação de um solo pródigo.
-         Beijaremos, na relva do amor, os teus frutos.

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