Não, eu nunca fui do tipo de sujeito que precisa se mudar pra se sentir vivo. Gosto da imobilidade preguiçosa, do conforto das coisas conhecidas, da placidez do endereço que habito desde sempre. Por isso o susto quando as vontades de procurar uma nova casa passaram a me assaltar com uma frequência quase alarmante.
Como é natural, ignorei tudo nos primeiros dias, como se aquilo não passasse de sonho ruim ou as inevitáveis manias de quem já começava a atingir a meia idade. Não muito tempo depois, porém, já estava com um jornal de classificados na mão, os olhos curiosos procurando as ofertas de aluguel.
Aquele, definitivamente, não era o meu mundo: um inferno de taxas e valores, uma casa mais cara que outra, dinheiro que eu não precisava, mesmo, gastar. Mas o meu coração, porra!, o meu coração batia mais forte a cada anúncio, era como se uma corrente elétrica saltasse das páginas do jornal diretamente para os meus olhos, uma empolgação mesmo.
Depois de horas de anúncios e preços altos, um verdadeiro presente explodiu bem diante dos meus olhos:
Casa ampla e mobiliada, ótima localização, aluguel mais baixo do mercado.
Ligar para XXXX XXXX
Antes de pensar, de considerar isso & aquilo, peguei o telefone e o negócio foi fechado ali mesmo, na hora, sem burocracias de espécie alguma. Mais fácil que roubar doce de criança besta.
Pedi um dia de folga na repartição pública onde trabalhava e todos se surpreenderam com a minha súbita atitude: em quase trinta anos de serviço jamais me ausentara, exceto por um furúnculo miserável que não me permitia nem sentar. Como não poderia deixar de ser, as perguntas cretinas vieram aos montes:
— Arranjou namorada, é?
— Ganhou na loteria?
— O furúnculo voltou?
Pra não me alongar com explicações desnecessárias, respondi apenas, não sem um certo orgulho:
— Mudei.
Fazia um calor dos diabos quando cheguei à nova casa. Eu trazia apenas uma mochila com as minhas poucas roupas, uma vez que, conforme o anúncio, não havia necessidade de mobília. E era mesmo isso: uma casa muito grande, cheia de móveis antigos — e fria, muito fria, o que contrastava com o clima lá fora. Apesar das grandes janelas, que tratei logo de abrir, parecia que o sol hesitava: preferia manter-se ausente e a salvo, longe de tudo, longe de mim. Não dei muita importância àquilo logo de início, admito. Só depois.
A casa era mesmo um museu: a única antiguidade que eu conhecia bem era a minha própria cara no espelho, e ali tudo cheirava a velho, dos quadros aos aparadores, as luminárias e os sofás, um horror de formas e pó com os quais eu não conseguia me identificar de jeito nenhum. Mas havia camas lá em cima, pelo menos, o chuveiro esquentava um pouco e a lareira botava um quase conforto no frio que impedia a todo custo a entrada do sol.
Esse primeiro dia na casa nova passou muito mais rápido do que eu esperava — e acrescento que isso foi bom. Um ligeiro desconforto se instalou em mim, uma espécie de arrependimento, mas já não havia mais nada que eu pudesse fazer: contrato assinado, compromisso firmado. O frio, que apesar dos cobertores congelou a minha bunda durante toda a noite, foi apenas o começo.
— Vai tratar esse resfriado antes que isso vire pneumonia, homem!
A minha colega de repartição soltou essa depois do meu milésimo espirro.
— O que é que você fez na sua folga? Se trancou no freezer?
Era quase isso, mas eu não tava com vontade de explicar. A sensação de ter comprado gato por lebre se alastrava por todo o meu corpo — e eu tremia, febril, os calafrios subindo e descendo pelos degraus das costelas. Mesmo assim, me mantive firme até o final do expediente, quando o chefe do setor, preocupado, se dirigiu a mim:
— Toma um conhaque com limão e manda quatro aspirinas pra dentro. Amanhã de manhã quero você aqui.
A compreensão e a solidariedade de algumas pessoas ainda é algo que me impressiona muito. Muito.
Eu tremia demais quando entrei em casa. A febre. Tudo o que eu queria era o conforto de um chá bem quente e o abrigo de um cobertor — vários, de preferência. Sentia também, ao mesmo tempo, uma vontade muito grande de explorar a casa. Ela era enorme, e eu mal sabia a quantidade de quartos e o que havia em cada um deles.
Depois do chá, e de ter me enrolado num cobertor bem grosso, fui para o andar superior disposto a averiguar as dependências dos meus novos domínios. Além do meu quarto, uma espécie de câmara frigorífica, havia outros sete, todos devidamente fechados como se escondessem segredos terríveis atrás das portas.
O interior de cada um deles não deferia muito do meu: uma cama larga, um criado-mudo pré-histórico, um penico de porcelana grande o suficiente para comportar as mijadas de um exército inteiro. A única coisa que chamou a minha atenção é que em cada quarto havia o retrato de um homem. Isso seria comum, corriqueiro até, exceto pelo fato de que cada quadro representava uma fase da vida do mesmo homem: no do meu quarto, por exemplo, ele se mostrava bem jovem, cheio de orgulho, uma bengala estilosa na mão direita, o olhar perdido num horizonte que o retratista achou por bem ocultar. No último quarto do corredor, antes do banheiro, o jovem do retrato já havia se transformado em ancião, dele não restava nenhum traço de orgulho, a bengala jazia no chão partida em dois e o seu olhar não estava mais perdido: parecia cravado bem em mim, ansioso, como se esperasse por algo.
Senti um arrepio dentro da febre, se é que isso é possível, e gotas de suor me escorreram pelo rosto. Fechei a porta do quarto disposto a não abri-la nunca mais e fui em direção ao banheiro. Um pouco de água fria me faria bem.
Assim como os quartos, o banheiro também lembrava o passado: louças de um tempo impreciso, vago, janelas altas de madeira, um piso de cerâmica tosca que certamente renderia uns bons trocados em qualquer loja de velharias. A única novidade era mesmo o chuveiro, milagrosamente branco e elétrico, o que contrastava em muito com o resto.
Essas coisas todas eu percebi em um segundo, dois no máximo, enquanto lavava o rosto. Foi nesse momento que notei o espelho: pequeno, a moldura de madeira se desfazendo sob o ataque dos cupins, um objeto que eu juraria não estar ali no momento da minha entrada. Mas isso não me preocupou. Um espelho é um espelho, pensei, nada mais.
Foi com surpresa que vi a minha imagem refletida nele: eu parecia bem mais velho, talvez por causa da febre, as rugas vincando acentuadamente o meu rosto. Vou ser sincero: não gostei nada daquilo. Mas havia algo mais incômodo, como se eu estivesse sendo observado pelo espelho, uma sombra, como se alguém me olhasse do outro lado.
Deixei o banheiro e voltei para o meu quarto decidido a esquecer tudo e dormir.
Depois de uma noite fria e povoada de sonhos estranhos, acordei me sentindo pior que no dia anterior. A febre havia cedido, mas deixara no meu corpo as marcas da sua fúria: eu parecia ter sido atropelado por um caminhão. Trabalho? Nem pensar. A repartição que se virasse sem mim.
Levantei da cama sentindo muita dor nas pernas. Medi a distância até a porta e cheguei à conclusão de que jamais chegaria lá. Só mesmo uma bengala me ajudaria a completar a tarefa. Uma bengala... Um choque percorreu meu corpo nesse instante e tudo escureceu por alguns segundos. Quando voltei a mim, estava numa espécie de escritório que eu ainda não conhecia, repleto de livros e mapas e poeira, quadros de gosto duvidoso, um inferno de objetos e miudezas sem fim. E, bem ao alcance da minha mão, como se zombasse de mim, uma bengala idêntica àquela do retrato.
— Que merda! — gritei para ninguém.
Depois de atravessar uma pequena distância empoeirada, apoiado na tal bengala, me deparei com uma escrivaninha. Nela, uma gaveta me convidava, de maneira quase obscena: me abre!
É claro que foi isso mesmo o que eu fiz, mas lá dentro só havia madeira antiga e esquecimento. Fiquei decepcionado, sem saber direito qual a razão. Ou melhor, inconformado, tanto que voltei a vasculhar a gaveta para enfim encontrar, lá no fundo, uma pequena folha de papel amarelada pelo tempo. Senti o meu rosto queimar de uma satisfação quase juvenil: era aquilo! Mas aquilo o quê?
O papel trazia apenas uma assinatura que me pareceu familiar e três breves palavras: Atrás da parede. Atrás da parede... O quê, atrás da parede? Meus olhos procuravam, mas era inútil: ali só havia livros e velharia, nada que indicasse uma entrada ou abertura, uma porta que não fosse aquela que conduzia à saída. E foi por ela que saí, sempre apoiado na maldita bengala, para dar num pequeno corredor que conduzia à sala — que ficava na parte inferior da casa. Inferior? Pois é.
Aquela casa já não fazia o menor sentido. Mais uma vez me arrependi da hora em que decidira abandonar o meu sossego preguiçoso, o meu endereço seguro: agora estava no colo do nada, faltando ao trabalho como um irresponsável, acabado feito um velho prestes a entregar os pontos. E ainda apoiado na bengala, um objeto incômodo sem o qual não conseguia mais me virar.
Fiquei ali mesmo na sala, imóvel, as três palavras martelando na minha cabeça sem parar. Tudo o que eu queria era fugir dali, retomar a minha vida, me livrar de uma vez por todas daquele pesadelo. Mas atrás da parede havia alguma coisa que eu precisava saber, alguma coisa que ao mesmo tempo me prendia. Senti as pernas doerem ainda mais e tive a impressão de que a bengala ia se romper. E a certeza de que a minha vida a partir daquele momento seria apenas isso: falência ou redenção.
Pela janela da sala percebi, mais uma vez, que lá fora o sol brilhava como sempre, quente, e que o interior da casa permanecia o mesmo: gelado. Mas isso não importava, era preciso vasculhar cada canto, cada milímetro daquele lugar. Enquanto não descobrisse o que havia atrás da parede não teria mais paz.
Com dificuldade em me mover, arrastei-me feito um rato por corredores e vãos empoeirados, subi e desci de um pavimento para o outro, sempre na expectativa de encontrar a entrada que me conduziria ao meu objetivo. Fosse eu um sujeito mais sensato, já teria mandado tudo à merda e saído dali, voltado para a minha antiga casa e retomado a minha vida — mas não, estava ali empacado como uma criança diante de um quebra-cabeça.
Depois de horas e horas de esforço inútil, deixei meu corpo cair numa velha cadeira e fechei os olhos. Eu só queria dormir, esquecer — e recuperar forças para recomeçar a busca mais tarde. Foi exatamente nesse momento que ouvi, bem às minhas costas, uma voz bem clara: É aqui...
Saltei da cadeira como se tivesse levado um choque e a dor nas pernas me fez cair sentado de novo. Não havia o que eu pudesse fazer a não ser me apoiar na bengala de novo, e foi isso o que eu fiz; precisava atender ao chamado.
A parede atrás de mim não era nem um pouco diferente das demais outras da casa: sólida, antiga, revestida por um papel de parede amarelado e sem graça. Mas o pulsar do meu coração repetia é aqui é aqui, e eu acreditava nisso. Como um cego, fiquei tateando por toda a superfície da parede, empurrando, até que ela rangeu e abriu uma fresta que me revelou um corredor escuro e ainda mais gelado.
Sempre com o apoio da bengala, empurrei um pouco mais a parede e entrei na escuridão do corredor. Sim, eu estava finalmente atrás da parede e próximo de descobrir o que ela ocultava. Sem nenhuma razão aparente, os retratos do piso superior me voltaram à lembrança, um após o outro, como se cada um deles quisesse me contar uma história — a minha história. Tudo isso se desfez quando percebi que, num ponto mais distante do corredor, havia algo. Alguém. Um homem.
À medida que eu me aproximava a escuridão do corredor diminuía. E a luz, fraca, não vinha de lâmpadas ou qualquer outra fonte elétrica, muito menos do sol, inexistente por ali: emanava do próprio homem, que, sentado no chão, parecia me esperar.
Quando enfim cheguei perto o suficiente para ver o rosto do sujeito, me deparei com ninguém menos que o ancião do último retrato do pavimento superior.
— Você... — eu disse, perplexo.
Ele sorriu e disse:
— O que é que você esperava encontrar? Um tesouro? A rainha da Inglaterra?
Havia algo que reconheci na voz do velho: o meu humor. O meu sarcasmo. Percebi também outra coisa, que me deixou ligeiramente perturbado: ao seu lado repousava uma bengala semelhante àquela na qual eu me apoiava, mas partida em dois pedaços, tal qual aparecia no retrato.
— A sua bengala... — tentei falar.
— Isso mesmo, a bengala. Por isso aguardava a sua chegada. Estou com muita dor nas pernas, sabe? Preciso de um apoio pra me levantar.
— Você quer a minha bengala? .
— Essa bengala não é sua. Ela é minha.
Eu considerei a minha própria dor nas pernas. Se eu lhe desse aquele apoio, certamente não suportaria o meu peso e cairia no chão. Igual a ele.
— Não posso — falei. — Não posso.
Com um movimento que considerei rápido demais para um velho, ele se aproveitou da minha proximidade e me tomou a bengala com um puxão vigoroso. Só pude ouvir a seguir o baque surdo do meu corpo no chão frio e a dor explodindo para muito além das pernas.
Gritar foi a única coisa que eu consegui fazer.
Sem me dar a menor atenção, o homem virou as costas pra mim e se dirigiu à fenda que dava acesso ao outro lado. Ao outro lado!
— Ei! — eu disse. — Vai me deixar aqui?
O homem se voltou sem dificuldade alguma. Parecia bem mais jovem. Parecia comigo!
— Você sempre esteve aí. Eu não. Na verdade, eu nem existo.
Minha cabeça girou. Eu já não entendia mais nada.
— Só cheguei aqui por causa do bilhete que você escreveu...
— Não entendeu ainda, rapaz? Aqui nada é o que parece. E ponha nessa sua cabeça dura de uma vez por todas: quem escreveu o bilhete foi você.
Sei que estou velho demais para pensar com clareza, e o frio aqui sempre me faz delirar. É tudo o que me resta. A única esperança que tenho é que mais cedo ou mais tarde alguém vai comprar esta casa, ou mesmo alugar, e ver os meus retratos. Alguém vai encontrar a bengala que deixei no escritório e ler, quem sabe, o meu bilhete. Só quando isso acontecer poderei passar, finalmente, para o outro lado.
2 comentários
Parreira,
Genial!!!
Um Primor de Narrativa!
Meus Parabéns, e Um Forte Abraço,
Jorge
Valeu, Xerxes!
Tô voltando à ativa!
Postar um comentário