segunda-feira, 12 de setembro de 2011

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In Media Res - Milena Martins

Calma, fala mais devagar. O caminhão ainda está passando (rolo compressor, lento) sobre a minha cabeça de pessoa solitária. Você gosta (só pode gostar), você adora me fazer surpresas. E, devo dizer, a cada dia me surpreende mais. Mas (consolo dorido) deve ser porque você me adora, deve ser por isso que me conta assim as suas surpresas. Você gosta (só pode gostar) de me mostrar a sua alegria, gosta (só pode gostar) de mim. Você, você é a minha melhor amiga.

Fala mais baixo, por favor (você fala tão alto quando fica empolgada assim, feliz assim, cheia de novidades a me contar assim). Estou ouvindo cada palavra (como uma facada funda. Eu até tentei, me desconcentrar eu tentei, pensar em outra coisa, no livro que estou lendo, nas coisas boas da minha vida, mas não tem nenhuma. Eu até tentei ter um motivo pra resistir ao dia de amanhã), mas essa avalanche de alegria, de boas notícias, de acontecimentos maravilhosamente especiais na sua vida me comprime (and the pression keeps on burning my soul – lembro agora o quanto gostamos sempre tanto dessa música, o quanto gostei sempre tanto de estar com você pra ouvir essa música, o quanto gostei sempre tanto de você, com ou sem música).
Só por um minuto, eu te peço, para de falar. Só por um minuto, eu te peço, me deixa te observar num silêncio solene, mágico e ficar te olhando (a você, que é tão solene, mágica) enquanto o tempo (rolo compressor, lento, implacável e contínuo) te eterniza em mim, na minha cabeça de pessoa solitária, na minha mente destruída com essa sua alegria (rolo compressor, lento, fatal). Sua felicidade nunca me doeu tanto. Nunca te amei tanto (cada dia mais). E te amar (cada dia mais) nunca me doeu tanto.
Agora sim, eu me repito internamente, em silêncio, solene, agora sim (esse dia ia ter mesmo que chegar, eu sempre soube), agora sim acabou.
Sempre me pergunto (sem resposta) como foi que isso começou. Talvez por ser sem resposta eu me pergunte. Quando foi que isso começou, eu me pergunto (nunca como ou quando vai acabar. Não vai acabar). Não pode ser, não pode ser assim, eu me dizia. Mas já era tarde. Minha linda, tão solene, mágica, e tão linda, eu não queria. Foram tantas as noites insones, tantas as crises de consciência, tantas as tentativas frustradas de impedir que isso começasse. Mas era tarde. Pra te esquecer já era tarde. Pra evitar a maldição, o veneno, a culpa já era tarde, pra tentar recuperar a paz que eu não sabia que um dia tive já era tarde. Eu nunca mais estaria em paz (não pode ser, não pode ser assim, eu me dizia. Mas já era tarde). Pra tirar você de mim era tarde. Desespero, desespero. Concluí em desespero: eu amava a minha melhor amiga (and I still do). Não podia ser. Mas era. Desespero. Eu não queria (minha linda, eu juro), mas já era tarde.
Você é a minha melhor amiga.
My best, you’re my best. Tento lembrar aquela música do Queen (amigos serão amigos até o fim, or something like that), mas, que dor!, não consigo. Talvez me ajudasse a desatar esse nó da garganta, a aliviar o peso desse rolo compressor (lento) sobre a minha cabeça de pessoa solitária. Você, a minha melhor amiga, está, afinal, tão feliz. Você, que é a minha melhor amiga, e que eu amo tanto, muito, cada dia mais, está, afinal, tão feliz. Isso não devia me doer. Infame. Amar é tão infame.
Não vou te deixar saber (acho que você gosta tanto de mim porque sei guardar os seus segredos. Ah, minha linda, os meus eu também sei) tudo o que eu fiz pra que você fosse só minha (eu sei que eu te bastaria, mas eu não te culpo. Eu sempre do seu lado, sempre de lado. Eu não te culpo. Eu não me culpo também). Não, eu não vou te deixar saber que eu te separei do teu noivinho marombado babaca (ele não te merecia. Tanto músculo pra tão pouco cérebro, minha linda. Você merece alguém gentil, uma pessoa culta, um amor que te dê amor, not only status). Eu sei que você gostava de andar com ele do lado, mostrando a sua caça (olhem pra mim, todas vocês, women of the world, vejam o pedaço de mal caminho que eu consegui pra mim), mas eu também sei que era só até ele abrir a boca (você mesma me contou isso, aqui em off, can you remember?). Alguém como você, tão culta, viajada, tão sensível, tão talentosa (ah, canta pra mim alguma coisa agora em vez de gritar as suas novidades alegres que me matam. Canta que é isso mesmo o melhor que você pode fazer por mim agora. Ou cala a boca, porque te ver assim too happy dói demais), alguém como você não poderia ficar com aquele homem, too stupid, uma porta! E eu nunca vou te deixar saber tudo o que eu fiz (e foi muito) pra te manter longe de todos(as) que se aproximavam de você com segundas ou sextas-à-noite-um-cineminha intenções. Não, minha linda, não te mereciam. O teu noivinho marombado babaca, o que veio depois dele, e depois do depois do que veio depois dele, eles não te mereciam (eu – riso irônico –, eu sempre lá, do lado, de lado, te vendo olhar pra todos(as) e pra mim não. Que dor! Mas não pode ser, não pode ser assim, eu me dizia. Porque você, minha linda, você é a minha melhor amiga).
Você sempre teve muito mau gosto pra homens, anyway, minha linda! É incrível como nunca soube escolher bem (até agora. Que dor!, se eu ao menos pudesse ainda fazer alguma coisa, como antes, como sempre. Mas já é tarde. Pra tentar te roubar já é tarde!, sempre, sempre foi tarde. Você é a minha melhor amiga). Sempre foi tão bom te ver chorar de desgosto quando algum deles te deixava. Tão melhor do que estar aqui, à essa mesa cheia nesse restaurante caro (ah, a minha linda, sempre ligada em riqueza – olhem pra mim, todas vocês, women of the world, olhem só o que eu consegui pra mim! –, tão boba a minha linda) enquanto você ri, me conta da sua felicidade (que dor!, rolo compressor, lento, fatal, implacável) e acaba comigo (infame, amar é tão infame!).
Eu sinto falta de quando você era só minha. Do tempo da escola, antes de tudo, antes de eu perder a minha paz, antes de eu descobrir (ou só admitir, who knows?) o meu amor (por você, minha linda, a minha melhor amiga), antes de todos eles que passaram pela sua vida nesses anos da nossa amizade, antes do noivinho marombado babaca e do dia de hoje (que, eu sabia, ia mesmo ter que chegar, o fim, the end, aux revoir, ma cherrie) à essa mesa cheia nesse restaurante caro, com a sua voz estridente na minha cabeça de pessoa solitária e essa torrente alegre que te sai da boca pra me destruir (damn you! Shut up!, eu quero dizer. Mas eu te amo demais). Naquele tempo, só líamos, ouvíamos música, criávamos o nosso mundo (tardes minhas na sua casa, tardes suas na minha casa, Ah!, how I miss those days) e era tão fácil. Viver era tão fácil. Te ter era tão fácil.
Eu ainda não entendia o coração apertado sempre que eu te encontrava, a ansiedade sempre que você ligava eu não entendia, a dor profunda (facas fundas na minha cabeça de pessoa solitária, no meu coração de quem não sabia que amar doía tanto – no one ever told me that love would hurt so much, and pain is so close to pleasure) quando eu te via com alguém (aqueles de quem eu te separei, porque não te mereciam. Aqueles de quem eu te afastei sem ainda admitir que, no meu grande amor desesperado, eu acreditava que só eu poderia te merecer).
Sim, você não vai saber (guardo segredos muito bem, minha linda, you know that) que eu te afastei de todos. E então era você no meu ombro: quero um namorado, vou morrer sozinha, ninguém gosta de mim! Tão boba você, minha linda, tão cega. Ali, te afagando (eu estava tão perto, com o meu grande amor desesperado, enlouquecido, ainda desconhecido e depois ainda maior e mais desesperado e mais enlouquecido porque descoberto), ali, tudo o que você queria estava ali (eu não te culpo por não ter visto, por ainda não ver, eu também não queria ter visto. Você, minha linda, é, afinal, a minha melhor amiga).
Nesses momentos era tão bom. Eu te abraçava e era bom. O cheiro do seu perfume, suor da sua nuca vindo de trás das orelhas, sua cabeça no meu ombro, meu braço sobre o seu ombro, eu te sorria e te dizia algum carinho conselheiro (e você me sorria de volta, como agora ri pra ele de volta, que te ri de volta também, e me dizia que eu era forte, tão boba você, tão cega). Nesses momentos era tão bom, nesse tempo era tão fácil. Você era só minha. Minha. A minha melhor amiga.
E agora você me chama aqui, a essa mesa cheia nesse restaurante caro (sempre tão chegada a riqueza, tão iludida, tão boba, tão cega a minha linda) junto com toda a sua família, pro anúncio solene, mágico (rolo compressor, lento, fatal, implacável, esse dia ia mesmo chegar, mais cedo ou mais tarde, fim, the end, aux revoir, ma cherrie, acabou) da porra do seu casamento!
E você sorri, fala alto, você está tão feliz (damn you! Shut up!, eu diria. Mas eu te amo demais), e esse aí do seu lado, que dor!, eu não posso dizer (nem pra mim eu posso dizer) que não te merece. Porque ele te ama (dá pra ver, ele te olha bobo, cego, só você existe. Que dor! Pra mim também só você existe! A minha melhor amiga). Todo esse porte nobre, essa conta bancária gorda, essa cultura, esse jeito meio blasé de te fazer carinho, te puxar a cadeira.
Eu queria tanto ser esse homem na sua vida. Mas eu não posso. Eu queria tanto te oferecer o meu grande amor desesperado, passar todos os dias na única ocupação de te fazer feliz. Mas eu não posso. Você está tão bem com ele, e tão feliz, e isso me dói (infame, amar é muito infame!). Olha pra mim!, eu quero gritar, pelo amor de Deus fica comigo!, eu quero gritar (mas eu não gritei até hoje, eu sei guardar segredos tão bem).
Uma última vez, você toca a minha mão, seu perfume é caro agora (que ele te deu de presente, você me diz), distribui os convites (vontade de rasgar, jogar os pedaços na tua cara, novela das oito, drama B, e sair gritando Damn you! Shut up! Mas eu te amo demais), pego o meu e olho fixamente, que dor!, e vejo que do lado do seu nome não está o meu nome e o nó na garganta aumenta e quero chorar. Que dor! Ele vai te levar daqui, de mim, ele vai te roubar pra ele, pra outro país (não vai! Fica comigo, pelo amor de Deus!). Que dor! Eu te quero tanto, eu te amo tanto! Ah, minha linda! Você é a minha melhor amiga, aquela que eu amo desde sempre, antes de tudo, antes de todos, antes desse aí do teu lado. Que dor! Que maldita dor (rolo compressor, lento, sobre a minha cabeça de pessoa solitária).
Que é isso?, você diz (tão perto de mim, sorrindo pra mim, te quero pra mim, você é a minha melhor amiga!). Desde quando casamentos te emocionam? Não conhecia esse seu lado sentimental.
(Eu sou, afinal, tão forte. E você tão boba, tão cega.)
Tenho vontade de te puxar pela mão, te roubar do mundo, te prender pra sempre, ou sair chutando as cadeiras e tentar arrancar com um porre, uma overdose ou um suicídio esse amor maldito, eterno, solene, mágico, desesperado e demoníaco do meu coração.
Mas, e em vez disso, enxugo uma lágrima, a única, e te rio de volta (última vez, desespero, esse dia ia mesmo chegar, eu sempre soube, fim, the end, que dor!). Não consigo pensar em esperança, em Deus, nas coisas boas da minha vida (não tem nenhuma), em alguma chance, uma sequer, pra afastar esse homem de você (tão rico, tão apaixonado, eu não tenho dinheiro, eu só tenho amor. E você quer dinheiro, minha linda, ou um pedaço marombado e babaca de mal caminho, uma porta. Você não só quer amar, minha linda) como fiz antes, sempre. Não vai dar certo. Não vai. Não pode ser assim. Quero gritar, chorar, querer tentar me matar. Mas já é tarde. Fim, the end, aux revoir, ma cherrie, que dor! Não pode ser, não pode ser assim. Não pode.
Você é a minha melhor amiga.
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E eu sou a sua.
Conto do livro Promessa vazia (Multifoco, 2011).

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