terça-feira, 20 de setembro de 2011

0

SEU AUGUSTO NO JARDIM DAS BELAS


Levantar não é fácil. Inverno.
O calor preso ao corpo que se esfria bruscamente. A tosse. A umidade de todo o resto. Os ossos. A idade. O tempo não é o inverno. O tempo não é o frio. O tempo é...
A luz acesa. Fraca. Como o corpo. A pele que escorre para o túmulo. Gravidade. Vontade?
Não há. O que há? Ainda. O ainda é demasiado insuportável. Demasiado insistente.
Deitava na cama com a esperança – sempre a esperança – de não acordar. Afogar-se na cama e no calor das cobertas. Penetrar nas fotos antigas, atravessar este mundo e encontrar o outro. Mundo outro.
Mas não. Acordava sempre neste. Mesmo quarto. Cama. Rua. Bairro. Mesma sempre melancolia. Rugas.
No espelho entristecia-se ao perceber o rosto. Retrato de Doryan Grey. E as dores. E as costas.
A gata Fênix aproximou-se. Negra de olhos. Negra. Deslizando sobre seus pés. Movimento contrastante com a dificuldade de movimento dele mesmo. Seu Augusto. Aposentado. Velho. Cansado.
“É, gatinha, continuo aqui.” A gatinha enroscou-se nas pernas. “Parece que alguém lá em cima ta me sacaneando.”  A mão antiga e fria apanhou o animal,um carinho. Medido. Calculado. Troca. A única desta espécie por dia.
O animal lhe dava um carinho. Ele dava outro. Depois era o mundo. Seus socos, pontapés e arranhões.
Apanhou algumas achinhas de lenha e fez um fogo no fogão. Água na chaleira. Fogo. Preparou o chimarrão. Secular. Mesma cuia e bomba. Uma vida toda. Antes havia Dona Justa, sentadinha na beirada do fogão. Tricô, sorriso fácil, conversa fiada, novela, jornal, vizinhos... Essas coisas. Agora o silêncio. O chiar do fogo. A lenha e sua consumição. Gostaria de ser lenha. Sumir em chamas de calor excessivo. Tinha frio. Nos pés. Muito frio.
O radio ligado. Canções que faziam aproximações temporais. Passado e presente. Linhas tênues. Lembranças que faziam releituras de imagens, situações... Ludibriavam a morte.
O frio. Na rua observava. A rua o observava. Velho e cansado.
Manhã de inverno. Frio que fazia chorar.
Entrou. A casa se aquecia lentamente. Assim como ele morria.
Lentamente.
Sentado na frente do fogão pensava. Pensava ou lembrava. Ou divagava? Já não consegui distinguir pensamento de lembrança. Tudo que pensava trazia de volta uma imagem do passado. Fantasmas.
Não almoçou. Não jantou. E a noite ali estava quando o outro bateu a porta e foi convidado a entrar.
Seu Augusto não conhecia. Mas o que importava. Dor? Sofrer? Era até piada. O outro sorria. Dizia que viera de longe para vê-lo. Para buscá-lo. Que  devia aceitar.
Foi esta palavra que causou certo desconforto ao velho. “aceitar”.
Tinha que entregar-se. Tudo. Era velho e não deveria relutar.
O homem era jovem. Mas os olhos eram velhos. Vetustos. E sorriam mais que a boca.
“Quem és?” Perguntou o velho. “Sabes bem.” Disse o outro.
O fogo do fogão alucinava de alegria e júbilo. E os pés do Seu Augusto já não sentiam frio.
“Achei que seria mais dramático.” “Te mandaram?”
“Poucos me mandam. Mas... sim. Fui instruído pra te levar.”
“corpo ou alma?”
“Alma”. Teu corpo não presta. Está podre.
“Estamos todos... não?”  O outro riu.
“Vens?”
“Não.”
“Como assim... não tens escolha velho.”
“Não estou escolhendo nada.”
“Tens que vir.”
“Teus espaços não me dizem respeito. Não me agradam.”
“Velho...” 
“Por que te interesso tanto?”
“E ainda perguntas?”
“Não vou.”
“Te levo em meus dentes!” E o mundo tornou-se dentes e dentes transformaram a carne e a carne em sangue e o sangue em berros e os berros em pesadelos e os pesadelos em cama e cama em corpo que sobressaltado acordava.
No olho uma lágrima. Ainda de pijama apanhou o revólver sobre o travesseiro.
Caminhou para a porta do quarto. Atravessou a sala, a cozinha. Muito frio. Chegou à porta dos fundos. O pátio. O galpão do trator. A pequena porta verde...
Ela estava ali. Olhos esbugalhados. Ensangüentada e nua. Amarrada na cama. Tremendo. Mais na morte que na vida.
“Desculpe.” Ele disse pra si mesmo. Ela não ouvia.  “desculpe”. Apontou o cano da arma para a testa da menina. Fim da dor.
Saiu para os fundos do galpão. As lágrimas começaram a cair. O Pátio das Belas. Era assim que chamava.
Quanto tempo? Muito tempo. Quantas? Muitas. Muitas belas. Flores. Plantadas. Não floresciam. Só choravam. Choravam  a noite toda. Eternamente.
Explodiu a cabeça.
________________________________________________________________________
Ronie Von R.Martins é especialista em Literatura Contemporânea Brasileira e em Linguagens  Verbais, Visuais e suas Tecnologias


Seja o primeiro a comentar: