sexta-feira, 16 de setembro de 2011

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TRÊS COLHERES DE AÇÚCAR – um conto clichê - Milena Martins

           Mal posso com a crueldade da saudade. Que maldade! Vivo sem afago. Sim, sou o cara mais desinteressante da face da Terra. Eu admito. Satisfeito? Agora cala a boca, Noel!
Desligo o som. A sala em silêncio é assustadora. Ligo o som. Tu vais ficar corcunda. Desligo o som. Farrokh Bulsara me irrita arranhando algo. Mudo o disco, ligo o som. Farrokh Bulsara me diz pra não pará-lo agora, porque ele está vivendo um momento bom, o desgraçado. Desligo o som. Farrokhs Bulsaras são muito irritantes, não sei porque insisto neles.
Se Ângelo não tivesse se irritado com o papo cabeça do Otávio, não houvesse se levantado brusco, jogando, no impulso, a cadeira de rodinhas pra trás até fazê-la bater na parede, e ido pegar uma xícara de café no exato momento em que eu dava um tempo do trabalho pra descansar meus olhos turvos e assimétricos da tela iluminada do computador, o café não teria acabado antes de a minha xícara estar cheia, eu não teria me arrependido de pôr o açúcar na minha xícara antes de ela estar cheia tampouco desenvolveria esse meu hábito obsessivo de só adoçar o café depois de ter certeza de o café ter enchido a xícara, eu não provaria o café e o acharia doce demais tampouco o jogaria fora no instante seguinte, não caminharia frustrado até a janela do escritório nem me debruçaria nela muito puto no exato momento da caminhada diária daquela mulher pela calçada. E se Gabriel não tivesse desviado minha atenção reclamando aos gritos da falta de café, eu a teria seguido com os olhos naquele dia, e visto pra onde ela sempre vai.
O que faria essas palavras completamente desnecessárias.
Tudo isso foi há três meses atrás. Eu diria que pode até ter sido mais, ou menos, se eu não fosse tão obcecado por originalidade – e essa duvidazinha com relação ao tempo já está batida. Não sei se foi ontem ou hoje, pode ter sido amanhã que matei meu professor de lógica etc.. Isso que quero contar começou há três meses atrás e, ainda que eu não tenha mesmo certeza disso, você não precisa ficar sabendo. A exatidão está muito em baixa, então serei exato. A primeira vez que a vi passar em baixo da janela do meu escritório gelado foi há três meses, ela estava de azul e era já naquele tempo tão feia quanto hoje, mas tinha o cabelo menor. Ele cresceu bastante e cobre agora as duas orelhas de abano. Eu gostava mais antes.
É uma merda isso de tentar ser ícone genial de uma geração. Por exemplo: merda é algo que só escrevo pra tentar ser natural, essa confissão é só pra tentar alcançar a autoficção tão em voga hoje em dia, citar a geração é só uma forma de sustentar esse conceito deturpado, deturpado é uma palavra bonita pra tentar ser poético, poético é um conceito deturpado. Mas não serei ícone de porra nenhuma e só escrevi o porra nenhuma porque acho bastante in jogar um palavrãozinho no meio das sentenças sérias, o que essa, por acaso, não era. Era só uma conjetura insone de alguém que não sabe a história que quer contar. Meu consolo é que, de repente, essa história vira um best-seller mundial, fico rico e levo Farrokh Bulsara pra viajar comigo. E então poderemos ser insones em Veneza, Florença, Paris, Londres, até porque ser insone em Veneza deve ser mais romântico, em Florença mais culto, em Paris mais chique, em Londres mais pontual.
Eu gosto dessa história toda dos caras que voltaram mudos da guerra. Não falar é melhor que falar como eu. Também gosto muito disso de a narração oral ter acabado etc., apesar de discordar, porque minha mãe não foi apelidada de Janete Clair à toa. É que a narração oral é falada, óbvio, e eu prefiro a escrita, porque escrevendo eu falo um bocado e, apesar de não saber por onde nem de que forma começar, como se vê, escrevendo eu posso contar essa história. Posso até me sentir o marinheiro viajante, voltando com a experiência debaixo do braço pronta a ser ofertada aos que nunca puderam deixar sua terra – dos quais, no reino da fala, eu sempre faço parte. Gente entaipada como eu, incapaz de pegar as coisas e ir, simplesmente. Se o mundo fosse só escrito, meu nomadismo faria sentido. Porque todos falam, eu continuo dividindo minha quitinete com Farrokh Bulsara, que gosta de músicas lentas demais.
Aos dezessete anos, fiquei louco ao saber que Bob Dylan fugiu de casa depois de ler on the road. Fui ler on the road. Quis fugir de casa. Aí li the catcher in the rye e talvez eu até quisesse matar o John Lennon se ele já não estivesse morto. Hoje sei que no primeiro resfriado que eu pegasse, juntaria minhas coisas molhadas de chuva no meio da estrada e voltaria correndo pras cobertas com cheiro de amaciante da casa dos meus pais e pras mãos com cheiro de Vick Vaporub da minha mãe, dando os olhos da cara e demais olhos pra voltar a ser criança. Na verdade, eu não chegaria a me molhar no meio de estrada nenhuma e, se isso acontecesse, eu já teria chegado longe até demais, porque eu não tenho porra nenhuma nessa vida e pra pagar uma passagem pra qualquer lugar eu teria de atrasar o aluguel e deixar Farrokh Bulsara desabrigado, já que, convenhamos, de carona não se vai mais a lugar nenhum. De manhã, antes de sair pro trabalho, os motoristas veem a primeira das muitas torrentes televisivas de más notícias do dia e consideram qualquer um que não seja si mesmos, isso que ninguém mais é além de si mesmo, um inimigo em potencial. Aí eles entram no carro e ligam o rádio num repórter aéreo qualquer pra fugir do fluxo intenso. Não conseguem, porque o fluxo é intenso o tempo todo em todos os lugares dessa cidade do hell e, só de sacanagem, começam a buzinar nas próprias e nas demais cabeças como se isso fosse abrir todos os sinais e acabar com todos os engarrafamentos, mesmo sabendo, como sabem, como sabemos todos, que isso só serve pra irritar. Eu?, eu falo três vezes a mesma sílaba e olho dobrado. Bob Dylan fez sucesso, eu ia me foder. Muita gente se fodeu tentando e você não sabe, porque só nos contaram a história bonita. Até porque, convenhamos, você pega as suas coisas e sai por aí esperando o quê? Meu filho, já virou o século, não tem mais nenhuma margarida nos escombros, eles mudaram o mundo pra pior. Eles fizeram o hoje e construíram a gente. O hoje é feio e a gente é má.
O fato é que eu estou obcecado por compreender tudo isso. No fundo, nem tão fundo assim, você é o que menos importa. Estou tentando escrever esta história porque não sei se existe uma história. Saberei no final. Descobrir esta história é só o que tem me interessado, por isso deixei crescerem as unhas dos pés e acabo de conseguir prender a parte de trás do cabelo com elástico, de fazer uma trança na barba e de levar um esporro de Vanessa – minha chefe gorda, chata e que não gosta de mim – por ter aparecido no trabalho parecendo saído de um filme com Tom Hanks, comentário pelo qual acho que vou apelidá-la de Wilson.
Vanessa não tem nada a ver com isso. Se intrometeu aqui por que é abusada, como todo mundo nesse quadrilátero gelado é para comigo, afinal, eu sou só o Daniel. E logo você vai descobrir que esse “só o Daniel” não é autopiedade nem autodemérito, e sim um senso de realidade aguçado pra caralho. Mas eu também não tenho nada a ver com isso e me intrometi aqui porque presto tão pouco quanto Vanessa. Ela, que passa todo dia embaixo da janela do escritório, ela tem tudo a ver com isso, ela é isso, ela é tudo.
E não me conta nada, claro, porque eu não falo com ela, eu não falo com ninguém, e ela é real. Se ela fosse minha personagem, me diria um nome e uma vida, ou nada disso, por que essa história de personagens que têm poder sobre os autores já deu, essa poesiazinha barata de quem viu muito conto de fadas na infância e quer mesmo acreditar que escrever é uma coisa sobrenatural ou – o que é mais constante – de quem sabe que essa porra é só um teatro mal-feito e faz pose de escritor maldito assolado pelo carma da escrita, pelo Fado sem escape da literatura, pra convencer primeiro a si mesmo e depois a todo mundo de que ser artista é especial, uma palhaçada. Mas se ela fosse minha, eu pelo menos teria poder sobre ela pra lhe dar o que eu quisesse segundo minha vontade, sobrenome, número de telefone, data de aniversário, endereço de trabalho, tipo sanguíneo, conta bancária. Acontece, porém, que ela infelizmente existe e eu nunca me aproximei dela e, ainda que me aproximasse, não conseguiria perguntar seu nome ou dizer só uma vez cada sílaba do meu.
É tudo culpa do Ângelo. Se ele tivesse lido Camus, se ele gostasse de Polanski, se ele conhecesse Diego de Rivera, se ele ouvisse Thelonious Monk, ele aturaria o Otávio e eu teria tomado o meu café há exatos três meses atrás. E agora estaria vendo pela quinta vez o discurso do rei com Farrokh deitado no meu colo.
E como não conseguirei falar pra ele pessoalmente, abro este parágrafo e aproveito esta linha pra mandar o Ângelo pra puta que o pariu. Na companhia do Otávio e de algumas citações de Foucault.
Sabem, fui um bebê de olhos azuis bem claros, e o esquerdo sempre era o segundo a se abrir quando eu piscava. O esquerdo continua azul, e mais opaco a cada dia, enquanto o direito ficou opaco, acinzentou e esverdeou antes de eu completar quatro anos e agora clareia verde cada dia mais, clareia cada dia mais, clareia, clareia, até desaparecer.
Deve ser por isso que moro com Farrokh num apartamento de um quarto, que é também sala, metade de cozinha, biblioteca e área de serviço. Chego do trabalho todo dia e abro a porta de casa sabendo que encontrarei Farrokh Bulsara sentado no tapete da sala. Ele levanta a cabeça, sabe que sou eu e torna a baixá-la. Então sento do lado dele e faço carinho no pelo amarelo depois de pôr no som uma música lenta. Farrokh gosta, fica quieto, com os olhos vazios parados no escuro, e às vezes chega a dormir. Ele não sabe falar, porque é gato. Não sabe o que é cor, porque seria daltônico não fosse cego. Gosta do meu toque de mãos pequenas. E não me pergunta nada. Porque gostaria de qualquer toque. E tem a sorte de não precisar preencher com palavras o espaço entre os laços. Invejo Farrokh Bulsara, nunca fui um gato cego, nunca aprendi a cantar.
E talvez por tudo isso eu sempre vá sozinho ao sempre mesmo restaurante na hora do almoço, que é a mesma todos os dias. Sempre passo na frente de um monte de outros restaurantes, mas não entro. Sempre tenho a oportunidade de sair pra almoçar antes ou depois do meu horário costumeiro, mas não saio. Sempre penso em pedir um pão com parmesão e orégano de trinta centímetros com recheio de frango defumado com cream cheese e molho de cebola agridoce, mas peço um pão de três queijos de quinze centímetros com recheio de almôndegas e molho de mostarda e mel no Subway. Com uma Coca-Cola de meio litro e um cookie de gotas de chocolate. Me imponho rotinas que sou incapaz de quebrar, pelo que me proíbo há exatos seis meses e dois dias de rever into the wild, que me faz ficar insatisfeito com a minha vidinha que só não muda porque eu não tenho força pra me dar coragem.
Daí que estou sempre na mesma mesa do mesmo restaurante, meio-dia e meia em ponto, exceto fins de semana e feriados, quando não vou ao trabalho e almoço sanduíche e janto lasanha congelada no meu apertamento velho e cheio de umidade. Nunca tem ninguém à minha frente na mesma mesa do mesmo restaurante. Nem ao lado da minha frente. Nem em frente ao lado da minha frente, ou seja, ao meu lado. Eu e quatro cadeiras vazias comendo em silêncio. Imagino meu par de pés grandes se sacolejando em baixo da sempre igual toalha vermelha do sempre mesmo restaurante em que almoço sempre à mesma hora, porque sou baixo demais pra que meus pés alcancem o chão quando me sento. Imagino meu par de pés suspensos no ar calçados com o mesmo par de tênis All Star comprados há exatos dois anos, isso que é mentira.
Eu poderia escrever uma carta de suicídio e até pensar em cometê-lo. Dizer o quanto a minha vida medíocre é medíocre e o quanto o meu estado de espírito infeliz é infeliz. Discorrer sobre a minha necessidade de me tacar da janela. Inventar um personagem depressivo cuja cena de suicídio com uma dose cavalar de barbitúricos eu descrevesse detalhadamente. Um tiro na testa é sempre uma boa estratégia de marketing. Mas eu prefiro me lembrar dela, que passa pela calçada todos os dias, feia e com orelhas de abando, e descrevê-la com amor e esperança, algumas conjeturas e muita idealização, como se ela pudesse mudar a minha vida medíocre e o meu estado de espírito infeliz, porque uma boa dose de romantismo vende mais.
Há três meses, ela é tudo o que existe. Ela é a tinta dessa caneta, a quarta, comprada há exatas três semanas juntamente com outras três na papelaria incrustada em baixo desse prédio velho de subúrbio. Eu poderia agora ficar enrolando sobre o quanto eu moro longe do trabalho e tenho que pegar dois ônibus na ida e na volta do centro da cidade todos os dias e sobre o quanto eu acho tristes os olhares dos mortos-vivos apinhados uns sobre os outros, os braços dependurados nos ferros do ônibus, ou andando em meio à multidão pavloviana das ruas do centro do Rio, indo todos os dias pros seus trabalhos à mesma hora e voltando contentes pra casa a tempo de ver a novela das oito que começa às nove. Eu também poderia contar que há três exatas semanas comprei quatro canetas azuis Compactor na papelariazinha chinfrin em baixo do prédio velho de subúrbio onde eu moro e que eu as testei num papelote amarelo, joguei-as na minha bolsa e voltei pro meu apertamento velho e úmido onde Farrokh me esperava ansioso por ouvir uma música lenta. Eu poderia até contar que a primeira caneta não escrevia quando a testei e que a troquei por outra, que parou de escrever quando cheguei em casa, que a segunda escrevia muito claro e resolvi dar uma chance pra tinta sair mais forte com o uso, mas ela foi clareando até desaparecer, como o meu olho verde, que a terceira vazava tinta, o que achei que fosse por pouco tempo e, quando a tirei de dentro da bolsa, o de dentro da bolsa estava azul. Mas a tinta da quarta caneta está quase acabando, ela é a tinta da quarta caneta e eu não quero que ela acabe antes de eu saber quem ela é.
Por ela desenvolvi uma lenta incapacidade de sublinhar frases marcantes nos livros sem riscar as palavras. Isso é marcante. É também emblemático e bonito, bom pra ser sublinhado com canetas azuis de quem ainda consegue não riscar as palavras. Gastei metade do meu último cigarro pra escrever tudo isso, que ela não vai ler, talvez nem você esteja lendo. Meu único consolo é que eu não fumo.
Eu deveria comprar um maço de cigarros, pra andar com um deles aceso entre as pontas do indicador e do médio. E deveria comprar um violão, pra andar com ele nas costas enrolado numa capa preta. O que me daria uma bela pose com esse cabelo desgrenhado e essa barba enorme com trança na ponta. Eu deveria cantar, rolar de rir ou chorar, mas na vida real, que não é romance B nem letra de samba, ninguém teria pena de um gago vagabundo. Nem quero que ela fique corcunda. Ela já é feia demais.
O escritório todo vazio à noite, uma luz amarela sobre mim e a cidade apagada aos meus pés, enquanto eu permanecia à janela, olhando pra fora, pra calçada onde ela sempre passa no mesmo horário, duas e meia de todas as tardes, e apalpando com minhas mãos pequenas os traços de meu próprio rosto. Quem enxerga pouco como eu reconhece melhor pelo toque. Meu olho verde abriu-se primeiro, depois se abriu o azul, sempre atrasado. O trabalho me iluminou de branco, era dia e eu tinha perdido meia hora num devaneio covarde. Limpei os óculos fortes, não limpei o suor da testa, tive medo das minhas mãos. Porque sou ambidestro o mundo é reto. Porque sou gago a dor se repete. Porque vejo pouco e tenho mãos pequenas não me conheço. Porque não gosto de café doce demais ela existe. Porque Ângelo não gosta de Godard, ela hoje vestia vermelho.
Isso foi há cinco horas atrás, antes de eu vir pra casa sentado no ônibus, observando à janela a cidade que se acendia. A cidade muito grande onde estou para sempre aprisionado na minha covardia de ir embora e na minha frustração por ser covarde, apenas inerentes ambas do meu desejo idiotinha e ultrapassado de correr o mundo pra ver se há algo mais do que o pouco de todos os dias, se a vida de um gago hipermétrope com um olho de cada cor é no Canadá a mesma que levo no Rio de Janeiro.
Eu sou um bundão. Por ter escrito aquele para sempre lá de cima. E esse bundão aqui do lado.
E por ficar tentado a escrever agora que a cidade é o meu crânio esmagado entre os paralelepípedos, os meus peitos de asfalto à espera das línguas de enchente, o som de todas as catedrais a me pender das orelhas. A cidade é meus dentes de nicotina piscando atenção, meus olhos de siga, meus hematomas pisando em freios. A tinta das fachadas é minhas lágrimas de parafina pingando sobre as flores. E todas as pétalas de sangue chovendo dos flamboyants. Quero ferver de novo as cordas do meu violão, soprar meu clarinete de unhas vermelhas, tomar uma xícara de café com ópio e tentar não dormir durante o pesadelo. A cidade é grande e tem cheiro de esgoto. A cidade é suja, a cidade é cinza, a cidade é uma pedra no peito. E eu sou um suspiro de dor.
Mas não escreverei nada disso, é brega demais.
Ou escreverei. Escreverei tudo, percorrerei todos os temas, me voltarei sobre todas as questões, e serei brega, serei tosco, clichê, pobre, vulgo, serei poeta barato, autor sem talento floreando vocabulário pra compensar a falta de assunto, matando personagens no final pra compensar a falta de profundidade. Eu não preciso de lirismo, eu não preciso de beleza, nem de força, nem da sua opinião. Sou o dono dessas palavras, o mundo é aqui e é meu. Sou a velha rota de olhar triste à espera do ônibus, sou as dobras nas orelhas de todos os livros, o pelo amarelo de todos os gatos cegos e as mãos nos ombros das crianças em fila. Sou o relógio da Central do Brasil, sou o azar dos coelhos sem patas, os graves de Fedora Barbieri e os agudos de Florence Jenkins. Sou o solstício de inverno anoitecendo às cinco e meia de uma tarde fria na beira do mar, sou a tarde fria, sou o frio, sou a beira e sou o mar. Sou os ipês lilases de julho, os amarelos de setembro, os flamboyants de novembro, sou o ano inteiro, sou todas as cores, sou o caos e o equilibro, a vida e a paralisia, a minha falta de humildade e os meus arroubos de pretensão. Sou muito, sou além, sou você e sou ela. Sou inconsumível e absoluto. Sou a plenitude que penetra meus olhos diversos e por eles posso ver todas as faces de todas as coisas, porque a palavra é o tolhimento da imagem. E tudo é imagem. Então tudo é meu, ela é minha. Sou a primeira centelha da criação.
E dou a ela o nome de Maria Lucia, sem acento, é claro. Gosto de Maria Lucia, sem acento, porque é o nome da minha mãe, que aqui se chama Teresa, o que não importa, já que aqui sou homem e me chamo Daniel, meu avô morto de enormes e claros olhos azuis que nunca se tornaram verdes como ficaram os meus. Maria Lucia está de vermelho e trabalha num escritório gelado, desce todos os dias sempre no mesmo exato horário pelo elevador do prédio onde trabalha e vai almoçar no sempre mesmo restaurante onde sempre almoço, todos os dias, duas horas antes dela, à mesma mesa a que ela agora se senta. Vermelha como uma pétala de flamboyant.
Saio do trabalho sem avisar Vanessa, que me vê saindo e reclama, gritando comigo pelas escadas. Viro-me pra Vanessa e mando-a à puta que a pariu com todas as letras ditas apenas uma vez. Vanessa se assusta agora, porque cresço e ela precisa levantar a cabeça pra me olhar nos olhos assimétricos, um de cada cor. Desço as escadas correndo e atravesso a portaria do prédio onde trabalho. Corro, corro, corro, o mais rápido que posso, vou atrás de Maria Lucia, que almoça sozinha neste exato momento.
Ela põe os cabelos pra trás porque sabe que ninguém a observa, ela já perdeu a prepotência esquizofrênica dos tímidos, que se acreditam observados o tempo todo, mal de que ainda não me curei. Maria Lucia joga os fios crescidos pra trás das orelhas de abano de que ela tanto se envergonha pra que possa levar o garfo à boca sem correr o risco de morder seu próprio cabelo liso preto. E segue mastigando lentamente seu prato de macarrão, segue carregando seu sangue A negativo, precisando soletrar seu sobrenome Cochrane quando perguntada, movimentando o pouco dinheiro de sua conta salário no Banco Itaú, frequentando frustrada seu emprego na rua da Quitanda 192, comemorando seu aniversário no dia 6 de agosto, atendendo seu telefone celular sem bateria com um número cheio de oitos.
Sei onde ela está e tudo que ela faz e pensa. Sei de tudo, porque sou o restaurante, sou a mesa, as quatro cadeiras, as duas e meia da tarde e a roupa vermelha de Maria Lucia.
Sou Maria Lucia, de quem agora me aproximo, sem deixar que ela me veja. Sou toda a minha vontade de puxá-la pela mão e levá-la pra outro restaurante, outra mesa, em outro horário, longe dali e das nossas vidas medíocres com nossos estados infelizes de espírito.
Sou o ônibus que pegaremos pra lugar nenhum, só pra quebrar a rotina, sou o batom vermelho que ela comprará pra tentar ficar mais bela pra mim, sem sucesso, é claro. Sou suas orelhas de abano sacolejando dois brincos de contas de vidro que compraremos numa cidade qualquer.
E um beijo estalado que ela me dará na orelha.
Sou nossas mãos geladas se entrelaçando durante uma chuva torrencial. Sou nossos arrependimentos e nossas alegrias. Sou nossa mudez recíproca, porque sou gago e ela surda e não precisamos falar.
Sou sua surdez que a impedirá de ouvir minha gagueira. E seu daltonismo que a impedirá de diferenciar meus olhos assimétricos.
Sou tanto e isso me dá um poder tão grande que me sinto sozinho no escuro, que sou o escuro e a sala em volta. Que sou meus olhos se abrindo, o verde primeiro e só depois o azul, pra sala escura em volta, silenciosa, porque a música acabou.
Sou Farrokh Bulsara lambendo os dedos de meus pés, sou o silêncio assustador na sala vazia e a música lenta que acabou no som.
Sou as folhas marcadas em vão no meu caderno pautado. Eu sou as folhas do meu caderno pautado e as marcas fundas das palavras ilegíveis que tentei traçar. Sou Maria Lucia e ela é tudo o que entendo, gravado fundo sobre o branco.
Porque eu sou o fim da tinta.
E da linha.

1 Comentário

Priscila

UAU.