Esse artigo apresenta alguns excertos especialmente selecionados e colhidos da “Terra dos homens” de Antoine de Saint-Exupéry. A obra, cujo título original em francês é “Terre des hommes”, foi lançado em dezembro do ano de 1939 e garantiu ao escritor o Grande Prêmio de Literatura da Academia Francesa. Os trechos abaixo, entretanto, foram extraídos da vigésima sexta edição do livro em língua portuguesa, cuja tradução foi realizada pelo também escritor Rubem Braga. Este exemplar, que tenho em minhas mãos, é do ano de 1986 e foi publicado pela Editora Nova Fronteira.
Éramos três tripulações da Aeropostale. Havíamos descido, ao cair do dia, na costa do Rio do Ouro. Meu companheiro Riguelle havia descido primeiro com uma biela partida; um outro companheiro, Bougart, aterrissou então para socorrê-lo, mas não pôde retomar vôo devido a uma avaria sem gravidade. Afinal, aterrissei, mas a noite já avançava. Resolvemos salvar o avião de Bougart, e, para fazer o conserto bem-feito, era preciso esperar a manhã.
Um ano antes nossos companheiros Gourp e Erable, descidos em pane naquele mesmo lugar, haviam sido massacrados pelos revoltosos. Sabíamos que naquele momento também um bando de mouros armados de trezentos fuzis estava acampado em algum lugar de Bojador. Nossas três aterrisagens, visíveis de longe, haviam com certeza alertado os revoltosos. Começamos uma vigília que podia ser a última.
Instalamo-nos para passar a noite. Tiramos dos aviões cinco ou seis caixas de mercadorias e as dispusemos em círculo, depois de esvaziá-las. No fundo de cada caixa, como dentro de uma guarita, acendemos uma pobre vela, mal protegida contra o vento. Assim, em pleno deserto, na crosta nua do planeta, num isolamento dos primeiros anos do mundo, construímos uma aldeia de homens.
Reunidos para passar a noite na praça grande da nossa aldeia, naquele círculo de areia onde as velas jogavam suas luzes trêmulas, ficamos à espera. À espera da madrugada, que nos salvaria – ou dos mouros. E não sei o que dava aquela noite um gosto de noite de Natal. Contamos velhas histórias, fizemos pilhérias e cantamos.
Saboreávamos o mesmo fervor leve do melhor de uma festa bem preparada. Entretanto, éramos infinitamente pobres. Vento, areia, estrelas. Um estilo duro para trapistas. Contudo, naquele círculo de areia mal iluminado, cinco ou seis homens que não possuíam mais coisa alguma no mundo a não ser suas lembranças trocavam invisíveis riquezas.
Nós nos havíamos, finalmente, encontrado. Anda-se lado a lado muito tempo, cada um fechado em seu silêncio, ou trocando palavras que não encerram nada. Mas eis a hora do perigo. Então vem a ajuda mútua. Descobre-se que se pertence à mesma comunidade. Cada um se enriquece com a descoberta de outras consciências. Então os homens se olham com um grande sorriso. E parecem prisioneiros libertados que se maravilham com a imensidão do mar.
O que salva é dar um passo. Mais um passo. É sempre o mesmo passo que se recomeça...
E pouco a pouco, sem dúvida, nossa casa se fará mais humana. A própria máquina quanto mais se aperfeiçoa mais se apaga e desaparece atrás de sua função. Parece que todo o esforço industrial do homem, todos os cálculos, todas as noites de vigília sobre as plantas, conduzem apenas à simplicidade, como se fosse necessária a experiência de várias gerações para libertar a curva de uma coluna, de uma quilha ou de uma fuselagem de avião até lhe dar a pureza elementar da curva de um seio ou de um ombro. Parece que o trabalho dos engenheiros, dos desenhistas e dos calculistas dos escritórios de estudos é apenas polir e apagar, realizar da maneira mais suave esta juntura de peças, equilibrar esta asa até que não se note mais nada, até que não haja mais uma asa ligada a uma fuselagem e sim uma forma perfeitamente desenvolvida, libertada de sua ganga, uma espécie de conjunto espontâneo, misteriosamente ligado, e da mesma qualidade de um poema.
Entre um homem e outro homem o espírito reserva um estranho espaço. Um sonho de moça a distancia de mim. Como atingi-la? Que posso saber dessa moça que volta para casa a passos lentos, os olhos baixos, sorrindo para si mesma, cheia de descobertas e mentiras adoráveis? Com os pensamentos, a voz e os silêncios de seu amado ela construiu um Reino – e desde então, para ela, fora desse Reino todos são bárbaros. Mais do que se estivesse em outro planeta, ela está isolada de mim em seu segredo, em seus costumes, nos murmúrios encantados de sua memória. Nascida ontem dos vulcões, da relva, do sal dos mares, essa moça já é meio divina.
Uma estrela já brilhava, e eu a contemplei. Imaginei que aquela superfície branca em que me achava havia estado ali, feito uma oferta, perante os astros somente, durante centenas de milhares de anos. Lençol imaculado estendido sob a pureza do céu. E senti alguma coisa no coração, assim como no limiar de uma grande descoberta, quando descobri sobre esse lençol, a quinze ou vinte metros de mim, um pedaço de pedra negra.
Eu estava sobre trezentos metros de espessura de conchas moídas. Toda a formação do terreno se opunha, como uma prova peremptória, à presença de uma pedra. Sílices poderiam dormir, talvez, nas profundezas subterrâneas, surgidos das lentas digestões do globo, mas que milagre teria feito subir um dentre eles até o alto, até aquela superfície por demais recente? O coração batendo com força, abaixei-me para apanhar o meu achado; um pedaço de pedra dura, negra, do tamanho de um punho, pesada como metal, em forma de lágrima.
Um lençol estendido sob uma macieira só pode receber maçãs; um lençol estendido sob as estrelas só pode receber poeira dos astros. Nunca antes um aerólito havia mostrado a sua origem com uma tal evidência.
Não sei o que se passa em mim. Esta força de gravidade me liga ao chão quando tantas estrelas são imantadas. Uma outra força de gravidade me prende a mim mesmo. Sinto o meu peso que me une a tantas coisas! Meus sonhos são mais reais que essas dunas, esta lua, estas presenças. Oh, o que há de maravilhoso numa casa não é que ela nos abrigue e nos conforte, nem que tenha paredes. É que deponha em nós, lentamente, tantas provisões de doçura. Que forme, no fundo de nosso coração, essa nascente obscura de onde correm, como água da fonte, os sonhos...
Mas eu conheço a solidão. Três anos no deserto me ensinaram bem o seu gosto. O que nos contrista não é a mocidade que se gasta numa paisagem mineral. É o pensamento de que, longe de nós, é o mundo que envelhece.
Abordando o Mediterrâneo, encontro nuvens baixas. Desço até vinte metros. O aguaceiro bate no pára-brisa e o mar parece estar fumegando. Faço grandes esforços para enxergar alguma coisa e não esbarrar no mastro de um navio.
O meu mecânico, André Prévot, acende um cigarro para mim.
– Café...
Desaparece no fundo do avião e retorna com a garrafa térmica. Tomo um pouco de café. Puxo, de vez em quando, o acelerador para manter duas mil e cem rotações. Passo os olhos pelos mostradores: meus súditos são obedientes, cada agulha está em seu lugar justo. Lanço os olhos para o mar que, sob a chuva, desprende vapores como uma grande bacia de água quente. Se estivesse num hidravião não gostaria de vê-lo tão “esburacado”. Mas estou em avião. Esburacado ou não, de qualquer modo não posso descer. E isso me fornece, não sei por quê, um absurdo sentimento de segurança. O mar faz parte de um mundo que não é meu. A pane, aqui, não me concerne, nem mesmo me ameaça: não tenho negócios com o mar.
Mais uma vez andei ao lado de uma verdade sem compreendê-la. Pensei que estava perdido, pensei que havia chegado ao fundo do desespero. E, uma vez aceita a renúncia, conheci a paz. Em horas assim parece que um homem descobre a si mesmo e se torna seu próprio amigo. Nada mais prevalece contra um sentimento de plenitude que satisfaz em nós não sei que necessidade essencial que nem sabíamos possuir. Imagino que Bonnafous, perseguidor de ventos, conheceu essa serenidade. E Guillaumet também, na neve. Eu, por mim, não sei como poderia esquecê-la: enterrado na areia até a nuca, lentamente estrangulado pela sede, senti esse calor no coração, sob minha pelerine de estrelas.
Como favorecer em nós essa espécie de libertação? Tudo é paradoxal no homem, já o sabemos. Asseguramos o pão a um homem para que ele possa criar alguma coisa – e ele se põe a dormir. O conquistador vitorioso amolece. E se enriquecemos o generoso ele se torna avarento. Que nos importam as doutrinas políticas que pretendem elevar o homem se, para começar, não sabemos que tipo de homem elas elevarão na terra? Quem vai nascer? Não somos um rebanho na engorda. E a aparição de um Pascal pobre pesa mais que o nascimento de alguns anônimos prósperos.
Nada sabemos, a não ser que há certas condições que nos fertilizam. Onde reside a verdade do homem?
A verdade não é o que se demonstra. Se nesta terra, e não em outra, as laranjeiras lançam sólidas raízes e se carregam de frutos, esta terra é a verdade das laranjeiras. Se esta religião, esta cultura, esta escala de valores, esta forma de atividade, e não outras, favorecem no homem sua plenitude, libertam nele o grande senhor que se ignorava, esta escala de valores, esta cultura, esta forma de atividade são a verdade do homem. E a lógica? Ela que se arranje para tomar conhecimento da vida.
A verdade para um homem é o que faz dele um homem. Quando um homem que conheceu essa dignidade de relações, essa lealdade no jogo, esse dom mútuo de uma estima em que se empenha a vida, compara essa elevação à facilidade medíocre do demagogo que exprime sua fraternidade aos mesmos árabes com grandes tapas nas costas adulando-os, mas ao mesmo tempo os humilhando, esse homem, se acaso não concordais com ele, sentirá de vós uma piedade um pouco desdenhosa. E terá razão.
Queremos ser libertados. O que dá a enxadada no chão quer saber o sentido dessa enxadada. E a enxadada do forçado, que humilha o forçado, não é a mesma enxadada do lavrador, que exalta o lavrador. A prisão não está onde se trabalha com a enxada. Não há o horror material. A prisão está onde o trabalho da enxada não tem sentido, não liga quem o faz à comunidade dos homens.
E nós queremos fugir da prisão.
Antoine de Saint-Exupéry, nascido aos 29 dias de Junho do ano de 1900 em Lyon, na França, foi escritor, poeta e pioneiro aviador. Seu livro mais conhecido é “Le Petit Prince” (O Pequeno Príncipe), originalmente publicado no ano de 1943.
Faleceu prematuramente, aos 44 anos de idade, no dia 31 de Julho de 1944 durante um vôo de reconhecimento sobre o Mediterrâneo, ao sul de Marseille, na França. Não se sabe ao certo se o seu avião foi abatido ou sofreu uma pane.
Mais coisas sobre nós mesmos nos ensina a terra que todos os livros. Porque nos oferece resistência. Ao se medir com um obstáculo o homem aprende a se conhecer; para superá-lo, entretanto, ele precisa de ferramenta. Uma plaina, uma charrua. O camponês, em sua labuta, vai arrancando lentamente alguns segredos à natureza; e a verdade que ele obtém é universal. Assim o avião, ferramenta das linhas aéreas, envolve o homem em todos os velhos problemas.
Trago sempre nos olhos a imagem de minha primeira noite de vôo, na Argentina – uma noite escura onde apenas cintilavam, como estrelas, pequenas luzes perdidas na planície.
Cada uma dessas luzes marcava, no oceano da escuridão, o milagre de uma consciência. Sob aquele teto alguém lia, ou meditava, ou fazia confidências. Naquela outra casa alguém sondava o espaço ou se consumia em cálculos sobre a nebulosa de Andrômeda. Mais além seria, talvez, a hora do amor. De longe em longe brilhavam esses fogos no campo, como que pedindo sustento. Até os mais discretos: o do poeta, o do professor, o do carpinteiro. Mas entre tantas estrelas vivas, tantos homens adormecidos...
É preciso a gente tentar se reunir. É preciso a gente fazer um esforço para se comunicar com algumas dessas luzes que brilham, de longe em longe, ao longo da planura.
* * *
Éramos três tripulações da Aeropostale. Havíamos descido, ao cair do dia, na costa do Rio do Ouro. Meu companheiro Riguelle havia descido primeiro com uma biela partida; um outro companheiro, Bougart, aterrissou então para socorrê-lo, mas não pôde retomar vôo devido a uma avaria sem gravidade. Afinal, aterrissei, mas a noite já avançava. Resolvemos salvar o avião de Bougart, e, para fazer o conserto bem-feito, era preciso esperar a manhã.
Um ano antes nossos companheiros Gourp e Erable, descidos em pane naquele mesmo lugar, haviam sido massacrados pelos revoltosos. Sabíamos que naquele momento também um bando de mouros armados de trezentos fuzis estava acampado em algum lugar de Bojador. Nossas três aterrisagens, visíveis de longe, haviam com certeza alertado os revoltosos. Começamos uma vigília que podia ser a última.
Instalamo-nos para passar a noite. Tiramos dos aviões cinco ou seis caixas de mercadorias e as dispusemos em círculo, depois de esvaziá-las. No fundo de cada caixa, como dentro de uma guarita, acendemos uma pobre vela, mal protegida contra o vento. Assim, em pleno deserto, na crosta nua do planeta, num isolamento dos primeiros anos do mundo, construímos uma aldeia de homens.
Reunidos para passar a noite na praça grande da nossa aldeia, naquele círculo de areia onde as velas jogavam suas luzes trêmulas, ficamos à espera. À espera da madrugada, que nos salvaria – ou dos mouros. E não sei o que dava aquela noite um gosto de noite de Natal. Contamos velhas histórias, fizemos pilhérias e cantamos.
Saboreávamos o mesmo fervor leve do melhor de uma festa bem preparada. Entretanto, éramos infinitamente pobres. Vento, areia, estrelas. Um estilo duro para trapistas. Contudo, naquele círculo de areia mal iluminado, cinco ou seis homens que não possuíam mais coisa alguma no mundo a não ser suas lembranças trocavam invisíveis riquezas.
Nós nos havíamos, finalmente, encontrado. Anda-se lado a lado muito tempo, cada um fechado em seu silêncio, ou trocando palavras que não encerram nada. Mas eis a hora do perigo. Então vem a ajuda mútua. Descobre-se que se pertence à mesma comunidade. Cada um se enriquece com a descoberta de outras consciências. Então os homens se olham com um grande sorriso. E parecem prisioneiros libertados que se maravilham com a imensidão do mar.
* * *
O que salva é dar um passo. Mais um passo. É sempre o mesmo passo que se recomeça...
* * *
E pouco a pouco, sem dúvida, nossa casa se fará mais humana. A própria máquina quanto mais se aperfeiçoa mais se apaga e desaparece atrás de sua função. Parece que todo o esforço industrial do homem, todos os cálculos, todas as noites de vigília sobre as plantas, conduzem apenas à simplicidade, como se fosse necessária a experiência de várias gerações para libertar a curva de uma coluna, de uma quilha ou de uma fuselagem de avião até lhe dar a pureza elementar da curva de um seio ou de um ombro. Parece que o trabalho dos engenheiros, dos desenhistas e dos calculistas dos escritórios de estudos é apenas polir e apagar, realizar da maneira mais suave esta juntura de peças, equilibrar esta asa até que não se note mais nada, até que não haja mais uma asa ligada a uma fuselagem e sim uma forma perfeitamente desenvolvida, libertada de sua ganga, uma espécie de conjunto espontâneo, misteriosamente ligado, e da mesma qualidade de um poema.
* * *
Entre um homem e outro homem o espírito reserva um estranho espaço. Um sonho de moça a distancia de mim. Como atingi-la? Que posso saber dessa moça que volta para casa a passos lentos, os olhos baixos, sorrindo para si mesma, cheia de descobertas e mentiras adoráveis? Com os pensamentos, a voz e os silêncios de seu amado ela construiu um Reino – e desde então, para ela, fora desse Reino todos são bárbaros. Mais do que se estivesse em outro planeta, ela está isolada de mim em seu segredo, em seus costumes, nos murmúrios encantados de sua memória. Nascida ontem dos vulcões, da relva, do sal dos mares, essa moça já é meio divina.
* * *
Uma estrela já brilhava, e eu a contemplei. Imaginei que aquela superfície branca em que me achava havia estado ali, feito uma oferta, perante os astros somente, durante centenas de milhares de anos. Lençol imaculado estendido sob a pureza do céu. E senti alguma coisa no coração, assim como no limiar de uma grande descoberta, quando descobri sobre esse lençol, a quinze ou vinte metros de mim, um pedaço de pedra negra.
Eu estava sobre trezentos metros de espessura de conchas moídas. Toda a formação do terreno se opunha, como uma prova peremptória, à presença de uma pedra. Sílices poderiam dormir, talvez, nas profundezas subterrâneas, surgidos das lentas digestões do globo, mas que milagre teria feito subir um dentre eles até o alto, até aquela superfície por demais recente? O coração batendo com força, abaixei-me para apanhar o meu achado; um pedaço de pedra dura, negra, do tamanho de um punho, pesada como metal, em forma de lágrima.
Um lençol estendido sob uma macieira só pode receber maçãs; um lençol estendido sob as estrelas só pode receber poeira dos astros. Nunca antes um aerólito havia mostrado a sua origem com uma tal evidência.
* * *
Não sei o que se passa em mim. Esta força de gravidade me liga ao chão quando tantas estrelas são imantadas. Uma outra força de gravidade me prende a mim mesmo. Sinto o meu peso que me une a tantas coisas! Meus sonhos são mais reais que essas dunas, esta lua, estas presenças. Oh, o que há de maravilhoso numa casa não é que ela nos abrigue e nos conforte, nem que tenha paredes. É que deponha em nós, lentamente, tantas provisões de doçura. Que forme, no fundo de nosso coração, essa nascente obscura de onde correm, como água da fonte, os sonhos...
* * *
Mas eu conheço a solidão. Três anos no deserto me ensinaram bem o seu gosto. O que nos contrista não é a mocidade que se gasta numa paisagem mineral. É o pensamento de que, longe de nós, é o mundo que envelhece.
* * *
Abordando o Mediterrâneo, encontro nuvens baixas. Desço até vinte metros. O aguaceiro bate no pára-brisa e o mar parece estar fumegando. Faço grandes esforços para enxergar alguma coisa e não esbarrar no mastro de um navio.
O meu mecânico, André Prévot, acende um cigarro para mim.
– Café...
Desaparece no fundo do avião e retorna com a garrafa térmica. Tomo um pouco de café. Puxo, de vez em quando, o acelerador para manter duas mil e cem rotações. Passo os olhos pelos mostradores: meus súditos são obedientes, cada agulha está em seu lugar justo. Lanço os olhos para o mar que, sob a chuva, desprende vapores como uma grande bacia de água quente. Se estivesse num hidravião não gostaria de vê-lo tão “esburacado”. Mas estou em avião. Esburacado ou não, de qualquer modo não posso descer. E isso me fornece, não sei por quê, um absurdo sentimento de segurança. O mar faz parte de um mundo que não é meu. A pane, aqui, não me concerne, nem mesmo me ameaça: não tenho negócios com o mar.
* * *
Mais uma vez andei ao lado de uma verdade sem compreendê-la. Pensei que estava perdido, pensei que havia chegado ao fundo do desespero. E, uma vez aceita a renúncia, conheci a paz. Em horas assim parece que um homem descobre a si mesmo e se torna seu próprio amigo. Nada mais prevalece contra um sentimento de plenitude que satisfaz em nós não sei que necessidade essencial que nem sabíamos possuir. Imagino que Bonnafous, perseguidor de ventos, conheceu essa serenidade. E Guillaumet também, na neve. Eu, por mim, não sei como poderia esquecê-la: enterrado na areia até a nuca, lentamente estrangulado pela sede, senti esse calor no coração, sob minha pelerine de estrelas.
Como favorecer em nós essa espécie de libertação? Tudo é paradoxal no homem, já o sabemos. Asseguramos o pão a um homem para que ele possa criar alguma coisa – e ele se põe a dormir. O conquistador vitorioso amolece. E se enriquecemos o generoso ele se torna avarento. Que nos importam as doutrinas políticas que pretendem elevar o homem se, para começar, não sabemos que tipo de homem elas elevarão na terra? Quem vai nascer? Não somos um rebanho na engorda. E a aparição de um Pascal pobre pesa mais que o nascimento de alguns anônimos prósperos.
* * *
Nada sabemos, a não ser que há certas condições que nos fertilizam. Onde reside a verdade do homem?
A verdade não é o que se demonstra. Se nesta terra, e não em outra, as laranjeiras lançam sólidas raízes e se carregam de frutos, esta terra é a verdade das laranjeiras. Se esta religião, esta cultura, esta escala de valores, esta forma de atividade, e não outras, favorecem no homem sua plenitude, libertam nele o grande senhor que se ignorava, esta escala de valores, esta cultura, esta forma de atividade são a verdade do homem. E a lógica? Ela que se arranje para tomar conhecimento da vida.
* * *
A verdade para um homem é o que faz dele um homem. Quando um homem que conheceu essa dignidade de relações, essa lealdade no jogo, esse dom mútuo de uma estima em que se empenha a vida, compara essa elevação à facilidade medíocre do demagogo que exprime sua fraternidade aos mesmos árabes com grandes tapas nas costas adulando-os, mas ao mesmo tempo os humilhando, esse homem, se acaso não concordais com ele, sentirá de vós uma piedade um pouco desdenhosa. E terá razão.
* * *
Queremos ser libertados. O que dá a enxadada no chão quer saber o sentido dessa enxadada. E a enxadada do forçado, que humilha o forçado, não é a mesma enxadada do lavrador, que exalta o lavrador. A prisão não está onde se trabalha com a enxada. Não há o horror material. A prisão está onde o trabalho da enxada não tem sentido, não liga quem o faz à comunidade dos homens.
E nós queremos fugir da prisão.
* * *
Antoine de Saint-Exupéry, nascido aos 29 dias de Junho do ano de 1900 em Lyon, na França, foi escritor, poeta e pioneiro aviador. Seu livro mais conhecido é “Le Petit Prince” (O Pequeno Príncipe), originalmente publicado no ano de 1943.
Faleceu prematuramente, aos 44 anos de idade, no dia 31 de Julho de 1944 durante um vôo de reconhecimento sobre o Mediterrâneo, ao sul de Marseille, na França. Não se sabe ao certo se o seu avião foi abatido ou sofreu uma pane.
* * *
Mais coisas sobre nós mesmos nos ensina a terra que todos os livros. Porque nos oferece resistência. Ao se medir com um obstáculo o homem aprende a se conhecer; para superá-lo, entretanto, ele precisa de ferramenta. Uma plaina, uma charrua. O camponês, em sua labuta, vai arrancando lentamente alguns segredos à natureza; e a verdade que ele obtém é universal. Assim o avião, ferramenta das linhas aéreas, envolve o homem em todos os velhos problemas.
Trago sempre nos olhos a imagem de minha primeira noite de vôo, na Argentina – uma noite escura onde apenas cintilavam, como estrelas, pequenas luzes perdidas na planície.
Cada uma dessas luzes marcava, no oceano da escuridão, o milagre de uma consciência. Sob aquele teto alguém lia, ou meditava, ou fazia confidências. Naquela outra casa alguém sondava o espaço ou se consumia em cálculos sobre a nebulosa de Andrômeda. Mais além seria, talvez, a hora do amor. De longe em longe brilhavam esses fogos no campo, como que pedindo sustento. Até os mais discretos: o do poeta, o do professor, o do carpinteiro. Mas entre tantas estrelas vivas, tantos homens adormecidos...
É preciso a gente tentar se reunir. É preciso a gente fazer um esforço para se comunicar com algumas dessas luzes que brilham, de longe em longe, ao longo da planura.
Seja o primeiro a comentar:
Postar um comentário