CARONTE
O olhar do homem de oitenta e nove anos atravessou a sala e repousou na janela de vidro que há pouco tinha sido fechada para afastar o inverno das costas em luto. A estiagem chegara mais cedo neste ano, e há muitos meses os jardins sofriam a seca. Um galho de árvore próximo à janela produzia um som oco cada vez que atingia o vidro em seu balançar. Mais um morto, pensou o homem enquanto ouvia o galho em seu anúncio de esgotamento, mais um morto.
Recostou-se um pouco mais na cadeira de plástico, os dedos entrelaçados sobre o colo e os pés cruzados – uma tentativa de guardar a alma. Ou o pranto. Não um pranto sofrido pelos tantos amigos que começaram a partir há mais de dez anos, mas um lamento quase egoísta por ter permanecido, semana após semana, revisitando a morte.
Observou as pessoas que se juntavam em volta do morto e sentiu o peito desesperado a estrangular seu coração. Reconheceu a viúva do amigo e pensou na sua própria, e no tom do vermelho que os olhos dela teriam quando chegasse a hora de chorar a sua morte. Enrugaria os lábios finos e eles desapareceriam para sempre, como se guardassem um último beijo ou uma lágrima no silêncio da saudade.
Mas não. Aquele homem havia enterrado a mulher e os amigos. Sobrevivera a todos. E era neste abismo que se mostrava o seu sofrimento – colecionava seus mortos mesmo sabendo que seria o último a chorá-los e, chegada então a sua hora, não haveria lágrimas que fizessem fluir a travessia.
Há quase uma década perambulava pela vida a buscar o fim com um desejo mudo. Se o encontrasse, encontraria também algum conforto pelos últimos anos vividos. Talvez finalmente pudesse se libertar da barca que vinha conduzindo, para então deixar-se conduzir por ela.
Ouviu a viúva soluçar, observou os filhos do defunto fecharem o caixão e erguê-lo e ajeitou-se novamente na cadeira. Desta vez não seguiria o cortejo.
3 comentários
"Há quase uma década perambulava pela vida a buscar o fim com um desejo mudo. Se o encontrasse, encontraria também algum conforto pelos últimos anos vividos."
Lindo!
Seus enredos têm sempre uma saída outra, que não aquela de sempre. Gosto imenso. Sempre.
Texto fantástico. Sintético e intenso...como a morte.
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