CARTA A JOAQUIM
Caro senhor Joaquim; primeiramente peço-lhe perdão pela liberdade tomada nesta carta já que nosso relacionamento sustenta poucos anos de superficialidade cotidiana, fato que tornaria quase injustificável uma confissão como a que eu farei. Mas a questão é exatamente essa: eu não estou aqui com a finalidade de estreitarmos nossos laços, muito menos possuo qualquer ilusão de que o senhor poderá, por meio destas linhas, conhecer-me melhor.
Ao contrário. Foi justamente pelo fato de nossa ligação não ultrapassar o protocolo social de um bom-dia ou boa-noite, que escolhi suas mãos como destino desta carta. O senhor pode achar estranha tal atitude, e devo dizer-lhe que tem todos os motivos para isso. Pode, inclusive, estar pensando o quão desagradável eu já fui em inúmeras situações – talvez não com o senhor, mas com os vizinhos, e quem sabe acabe mudando de ideia a partir desta carta. E também como fui nada sociável em nossas comemorações de fim de ano e, quase sempre, trancado em casa como em uma fortaleza.
A questão é que, de fato, eu pensava ser o meu apartamento uma fortaleza. Daquelas intransponíveis. Era ali que eu me refugiava por dias e noites, e confesso que me parecia um tanto admirável sua expressão quando eu finalmente me decidia por sair à rua, naquele seu cumprimento satisfeito como se uma força misteriosa e misericordiosa qualquer tivesse me arrancado do apartamento escuro e jogado para a vida.
Por isso, meu caro senhor Joaquim, foi em seu leve sorriso de todos os dias que eu resolvi depositar estas minhas palavras. Talvez ele faça as letras menos duras, talvez torne menos miserável o motivo pelo qual lhe escrevo. Mas pode ser também que ele, o sorriso, não sobreviva a esta carta. Então peço que a leia como se estivesse a escutar, abafados pelas solas de borracha dos tênis pouco gastos, os meus passos no fundo do corredor a caminho da rua e do seu bom-dia.
Não sei ao certo se foram as solas de borracha ou os matinais sorrisos de bochechas que me trouxeram até aqui, impresso neste papel diante de seus olhos e sua sabedoria tão cotidiana. Mas eu precisava disso. De uma compreensão filosoficamente rasa para essa confissão. De certo eu não suportaria algo mais denso ou analítico, justamente pelo fato de que em todos esses anos em que convivemos eu e minha consciência dentro daquele apartamento-forte, eu fiz nada além de mergulhar numa desvairada busca pela mais profunda razão da minha existência.
E, caro Joaquim, devo dizer-lhe que foi o senhor o motivo de eu ter descoberto enfim a suavidade no simples permanecer. Permanecer dia após dia em uma incessante sucessão de despertares, trabalhos, cumprimentos, relacionamentos, existires. Foi por sua causa que eu descobri, na banalidade da rotina absorvida, uma beleza interessante – quase um êxtase burro e fácil demais.
Esta carta é para contar-lhe que o senhor me libertou de minha caverna, senhor Joaquim. Não permanecerei mais a contemplar sombras. Mas o problema – o grande problema – meu caro, é que as auras assombreadas que eu tanto observei e tentei compreender cresceram demais e já se fundiram em mim. Sua presença constante não me deixa dormir ou viver, justamente por entender que aí fora o dia a dia não sabe da proporção de meus fantasmas. O fato é que eu compliquei demais.
Portanto estas linhas trazem mais do que um desabafo ou uma confissão. Estas linhas contornam o meu adeus. Imagino que a esta altura o seu sorriso tenha se desfigurado em um esboço de tristeza e, por mais que possa parecer cruel, isso me contenta. Não por sua infelicidade crua, mas por eu poder ao menos pensar que alguém sentirá minha falta, mesmo que esse sentimento configure apenas um item a ser cumprido em meio à rotina.
Exatamente por isso que esta carta é destinada a você, meu amigo Joaquim (teríamos já adquirido tamanha intimidade?): você é o culpado disso tudo. Você e esse conformismo alegre que o faz se posicionar na guarita da portaria deste edifício todos os dias à espera da oportunidade para um bom-dia. É por esta razão que meu primeiro e único adeus se afundará na tolice dos seus olhos. Talvez eu encontre na morte, e ela encontre em seu olhar, a trivialidade de que a vida é feita. De que a felicidade é feita.
Com admiração em tê-lo conhecido, o meu adeus.
Fernando Villa, do apartamento 31.
1 Comentário
Um texto fantástico que prende a atenção do começo ao fim.
Parabéns!
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