O SEU DIFÍCIL OLHAR
I
«Que tal correu?»
«Não sei dizer…talvez bem, talvez mal.
«Encontraram-se?»
«Sim»
«E então?»
«Não quis correr na sua direção embora fosse isso que me estava a apetecer»
«Não devemos reprimir os desejos…»
«Eu sei. Mas há situações que, bem vê, em que existe um certo constrangimento, apesar de tudo»
«Os seus olhos não brilhavam? As suas mão estavam serenas?»
«Eu sei que quer olhar para mim, sinto isso, sinto que me quer olhar. Que, acima de tudo, deseja olhar-me e que isso lhe chega»
«As mãos?»
«Por favor, não me faça falar acerca das mãos…Amo as suas mãos. As suas mãos não pertencem ao seu corpo. São outras mãos que deviam estar ali agarradas aos braços e não estas. E não são serenas»
«São trémulas?»
«Têm dedos magros e esguios. São mãos que vêem.
«Certamente já lhe apeteceu tocá-las, acariciá-las…»
«Oh sim! Se eu pudesse agarrar-me às suas mãos como um náufrago…Apertá-las-ia, beijá-las-ia entre os dedos, suavemente os meus lábios as tocariam ao de leve, quase sem se dar por isso mas o suficiente para não nos esquecermos, nunca mais, do gosto dessa pele!»
«Não sei se já lhe perguntei, mas…o seu olhar? Como é o seu olhar?»
«Quantas vezes já voltei atrás apenas para lembrar-me do seu olhar! Ou, simplesmente, para dele me desviar. Do seu difícil olhar!
«Desencontros…»
«Nunca! Somos absolutamente cúmplices mesmo sem nos olharmos ou tocarmos. Corremos ambos na mesma direção!»
»Apaixonados?»
«Gostava que gostasse de gostar de mim…»
II
«Já se encontraram novamente?»
«Hoje telefonei e combinámos um encontro»
«Deseja esse encontro?»
«Há-de ser na praia, lá em cima na esplanada, no dia em que estiver fechada para que não vejamos ninguém e ninguém nos veja. Desejo tanto este encontro!»
«Bate, realmente, o seu coração?»
«Sinto o meu coração apressado, sim. Sinto-o descompassado, aflitíssimo, doido de paixão. Quero respirar e mal consigo. Na antiga aridez do meu rosto nota-se agora uma luz branca, brilhante, que toda me ilumina. Acho que toda a gente percebe a situação em que me encontro.
«Quer e não quer…»
«É a única razão de viver, esta paixão. Não como, não durmo, olho e não vejo, corro sem me cansar, os dias não passam, as horas não contam. Sinto-me como qualquer coisa de infinito, qualquer poeira do espaço sideral, indefinida, incompreensível.
«Por favor! Exagera!»
«Já alguma vez esteve apaixonado? Já esteve apaixonado pela segunda vez na sua vida, no seu estado adulto? Repare que insisto: pela segunda vez?»
«É amanhã que se vão encontrar?»
«A segunda paixão é mais verdadeira do que a primeira. É mais cautelosa e mais violenta»
«Como foi que lhe aconteceu, como é que estas coisas acontecem? Não se sabe, não é? Ao certo, ao certo, ninguém sabe…»
«Encontrámo-nos numa pastelaria. Relembrámo-nos imediatamente um do outro quando nos vimos. Tinha já esquecido o seu rosto mas não a sua voz e foi muito bom quando nos encarámos. Chovia intensamente nessa hora de almoço. Subi a rua a correr encostada aos prédios. Com certa angústia fui sempre olhando em frente para ver se o via a caminhar mais adiante ou encostado nalguma porta ou parede. Na verdade não o imaginava tão magro, encharcado, fumando um cigarro húmido, dissolvido numa multidão apressada que corria rua acima, disfarçado de si próprio. Quando alcancei a porta da pastelaria ele já lá estava. Como lá chegou, não sei. Nesse momento a vontade que tive, palavra de honra, foi fazer-lhe qualquer coisa de mal, qualquer coisa que o deixasse transtornado, para que pensasse mal de mim. Apeteceu-me, imagine, chupá-lo! Chupar-lhe os olhos, a boca, comer, até, qualquer parte do seu corpo. Ai! Amo-te! E lancei este grito de paixão na sua cara vezes sem conta, em silêncio, sufoquei de tanto grito!»
«Falaram, ao menos, qualquer coisa? Sei que na maior parte dos estados apaixonados de que tenho conhecimento, as palavras quase não contam, custam a sair. É isto verdade?»
«Olhámos um para o outro para termos a certeza de que éramos nós mesmos – só nos tínhamos visto uma vez – e entrámos, com rapidez, na pastelaria. A intenção era almoçarmos qualquer coisa, ali mesmo, de pé, ao balcão. Um empregado amável perguntou se queríamos entrar para a zona das mesas e nós, sem pensar muito, seguimo-lo.
III
Numa mesinha, num canto escuro da sala de jantar, estamos nós sentados olhando um para o outro sem qualquer à-vontade. O meu desejo é estender os braços por cima da mesa e agarrar nas suas mãos, percorrer-lhe os braços com as polpas das pontas dos dedos, ao de leve, para senti-lo completamente. As minhas pernas estão juntas debaixo da mesa. Bastará qualquer insignificante gesto seu, qualquer sinal, que eu afastarei imediatamente as minhas belas pernas de modo a acolher um pé seu, por exemplo, um só pé seu que seja, na impossibilidade de ter todo o resto do seu corpo.
Mas não. Neste momento, não existe qualquer esperança de intimidade. Limito-me a disfarçar o meu desejo olhando com aparente interesse para a decoração da sala onde estamos.
«Não te importas que fume um cigarro?» perguntou-me.
«Podes fazer o que quiseres», respondi-lhe. Fiquei muito arrependida de ter-lhe falado assim. Os seus olhos transparentes trespassaram-me. Notei, pela sua expressão, que ele estava a pensar muito rapidamente no que havia de responder-me. Tinha, de facto, de ser rápido porque eu estava decidida a improvisar ali mesmo um projeto de sedução.
IV
(…) E aqui estamos os dois sentados, em frente um do outro, numa pastelaria, a uma mesa-fronteira, há milhares de anos, com sentimentos e interrogações antiquíssimos e ainda sem maneira de os resolver. Brincamos com as nossas mãos, os nossos dedos, com os nossos corpos há tanto, tanto tempo e estamos sempre na mesma, não envelhecemos nem rejuvenescemos, o encantamento que sentimos é o mesmo que sentimos ontem e que sentiremos amanhã bem cedo quando nos levantarmos e corrermos um para o outro, ansiosamente, como se nunca nos tivéssemos reencontrado e afinal não posso estar contigo como desejo hoje, porque ontem estivemos juntos e conhecemo-nos integralmente a ponto de não duvidarmos um do outro, a ponto de sabermos os gestos seguintes e anteriores, de partilharmos sabedoria e, no fundo, quem és tu? Porque me queres assim?
E aqui estamos os dois sentados nesta pastelaria, há milhares de anos e começamos a lembrar-nos de coisas idiotas que aconteceram e rimo-nos, sem dentes, bebés ainda, com gargalhadas descontroladas. Agora, neste princípio, na escuridão do mundo, animais gigantescos habitam a Terra e fazem-nos estremecer de terror quando se aproximam de nós. Agora, as grandes flores carnívoras e as florestas são tão impenetráveis e tão profundas que nelas não entra a luz a não ser a que emana dos nossos corpos brilhantes, quando por lá passeamos. Tudo é imenso e misterioso. Encontro-te junto a uma rocha agachado, nu, piando como um pássaro pequeno e aconchego-te com todas as minhas forças, junto ao meu coração. Amo-te, pequeno pássaro. As tuas mãos tremem e o teu corpo freme. Aos poucos ganhas confiança em mim, reanimas-te, a força volta, tocas-me, excitas-me, não é preciso muito para eu te querer, bastará um sinal, um riso, um sorriso, um olhar, um discreto apalpar, toque, beijo, festa, pensamento ou palavra e aqui estou eu, verdadeiramente exposta, sinceramente aniquilada por amor. Mas isso ninguém compreende, nem tu, nem outros antes de ti, nem outros depois de ti.
Com um gesto cinéfilo tocas no meu queixo com a mão e ergues-me o rosto até ficar num plano tal que será fácil beijares-me. No entanto não o fazes. A mesa-fronteira barra-te os movimentos como a sombra do tempo barrou a nossa prometedora união. Mas eu sinto o que tu sentes que é o mesmo que sentimos e sentiremos quando de novo nada houver na Terra senão estrume petrificado de possíveis animais, pegadas vincadas nos trilhos dos caminhos que foram, ruínas e mais ruínas dissimuladas na poeira dos ares, carvões e escolhos e fósseis desconhecidos de conchas e crustáceos nunca vistos e ossos, muitos ossos antiquíssimos, entre eles, os nossos próprios. Voltámos ao princípio, não foi? BANG! BANG! BANG!
(…) A tarde, suavemente, terminou. A noite apareceu e miríades de estrelas prateadas caíram sobre a Terra. O cenário azul negro do céu, como um arco em ogiva, envolveu-nos irremediavelmente obrigando-nos a um olhar fantástico à nossa volta. Foi então que percebemos claramente, acordados pelo brilho fortíssimo duma certa Lua imaginada, esta paixão. Não existe, nada existe, nada, nada, mesmo nada. O que vimos não era nada: nem rostos, nem figuras, ou animais, ou vegetação, ou mares ou terras, nem cidades grandes, nem prantos ou alegrias. Apenas nós. Até ao fim.
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