quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

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CONTAÇÃO - "Outra história de uma mesma história" (por M.Mei)





OUTRA HISTÓRIA DE UMA MESMA HISTÓRIA

“Já estou cansado de contar aquela estória
Que é sempre a mesma estória
Que resume-se em desilusão”
Cartola, A mesma estória

Os ponteiros do relógio marcavam alguns poucos minutos passados das doze horas, o que justificava o tímido sol a estirar-se sobre o campanário e os arcos neo-românticos da Igreja de Santa Cecília. Os carros desciam acelerados pela Rua das Palmeiras e a rapsódia amadora das buzinas mostrava que ninguém estava ali a passeio. Era meio-dia de uma terça-feira comum na região central da cidade mais populosa do país.
Apesar da luminosidade imponente que cavava com agressividade as poucas nuvens cinza espalhadas pelo céu, fazia frio. Era maio e a brisa gelada confirmava o outono. Uma chuva rala, atípica da época, tentara lavar o asfalto há pouco, mas acabou por render-se ao calor dos pneus que o roçavam continuamente.
O cheiro da cidade mostrava uma união um tanto trágica de combustível queimado à gordura que exalava dos carrinhos de cachorro-quente e pipoca doce. O coração de São Paulo abriga incontáveis cozinheiros ocasionais ambulantes, que saciam a fome repentina e apressada de seus milhões de habitantes. São esses vendedores de “dogão” que outrora engraxavam sapatos nas escadarias dos metrôs e no futuro comercializarão revistas e livros usados em tábuas de madeira montadas sobre cavaletes nas calçadas deste grande caleidoscópio urbano.
A paulicéia de Mário de Andrade e depois de Adoniran também abriga os mais diversos e inimagináveis sons: os Hip-hop que duelam com sertanejos em rádios de carros vizinhos a aguardar o verde do semáforo, buzinas agudas que parecem não incomodar o homem que assovia Cartola sentado ao meio-fio, os vendedores ambulantes que pelejam pelos passantes no seu frenético vai-e-vem, e o oco das bolas de sinuca que se debatem sobre as mesas no fundo do bar.  
De dentro da loja de colchões era possível vê-la. Na calçada oposta, sentada de pernas cruzadas – como se sentam as crianças em rodas de histórias – a mulher vestia-se em andrajos. Tão mínimas eram suas vestimentas, que se destoavam das apropriadas àquela terça-feira de vento gelado e sol acanhado de um meio-dia de outono da cidade de São Paulo.
As calças eram largas, talvez coubessem duas mulheres daquela dentro das calças, e aparentavam ter sido, um dia, de um cinza claro – àquela hora tinham as cores de suas manchas. A camisa vermelho-sangue não tinha mangas e deixava transparecer o sutiã roto, que tinha a alça direita enlaçada na base das costas: um nó improvisado pela necessidade. Tinha pés calçados pela própria casca, escura, uma adaptação darwiniana para sobreviver ao concreto quente e atroz das ruas que percorria todos os dias. Era só – nenhum agasalho ou gorro para aquecer-lhe ao fim da tarde.
Tinha encostada em seu quadril uma sacola de plástico com o nome de um grande supermercado escrito em azul e vermelho, amarrada com vários nós. Ela, a mulher, olhava o pequeno embrulho em intervalos pequenos, como se lá guardasse algo tão precioso como uma vida. Dividia essa atenção com pessoas que apertavam o andar quando a avistavam, o rosto de pele morena e muito seca e os cabelos levemente grisalhos. A cada passante a mulher murmurava algo, mas poucos sequer percebiam aquela miséria absoluta, a confundir-se com o chão. Seus gestos eram tímidos, infantis até, como os gestos da desventura anônima – desprovidos de agressividade, apesar da violência social que os gera, não causam grandes incômodos aos olhos do mundo.
O segurança do Banco multinacional observava, esporadicamente, aquela mulher encostada à mureta que circundava o pequeno jardim ornamental no acesso do prédio. Estava a menos de três metros dele, e podia vê-la em detalhes. Ali, a miséria absoluta. A refletir uma imagem um tanto destorcida nas portas de vidro da casa monetária. A mulher indigente, vestida em trapos naquela tarde outonal da Rua das Palmeiras, na região central de um dos maiores centros econômicos do país, se multiplicava nas diversas barreiras de vidro. Como se multiplica a pobreza, essa moléstia da condição humana, durante todas as estações do ano neste imenso país legitimamente tropical.  

*Crônica publicada originalmente no jornal O Popular de Mogi Mirim, no dia 26/03/2011.


Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga emhttp://gracadesgraca.com .


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