OUTRA HISTÓRIA DE UMA MESMA HISTÓRIA
“Já estou cansado de contar aquela estória
Que é sempre a mesma estória
Que resume-se em desilusão”
Cartola, A mesma
estória
Os ponteiros do
relógio marcavam alguns poucos minutos passados das doze horas, o que justificava
o tímido sol a estirar-se sobre o campanário e os arcos neo-românticos da
Igreja de Santa Cecília. Os carros desciam acelerados pela Rua das Palmeiras e
a rapsódia amadora das buzinas mostrava que ninguém estava ali a passeio. Era
meio-dia de uma terça-feira comum na região central da cidade mais populosa do
país.
Apesar da
luminosidade imponente que cavava com agressividade as poucas nuvens cinza
espalhadas pelo céu, fazia frio. Era maio e a brisa gelada confirmava o outono.
Uma chuva rala, atípica da época, tentara lavar o asfalto há pouco, mas acabou
por render-se ao calor dos pneus que o roçavam continuamente.
O cheiro da
cidade mostrava uma união um tanto trágica de combustível queimado à gordura
que exalava dos carrinhos de cachorro-quente e pipoca doce. O coração de São
Paulo abriga incontáveis cozinheiros ocasionais ambulantes, que saciam a fome
repentina e apressada de seus milhões de habitantes. São esses vendedores de
“dogão” que outrora engraxavam sapatos nas escadarias dos metrôs e no futuro comercializarão
revistas e livros usados em tábuas de madeira montadas sobre cavaletes nas
calçadas deste grande caleidoscópio urbano.
A paulicéia de Mário de Andrade e depois
de Adoniran também abriga os mais diversos e inimagináveis sons: os Hip-hop que duelam com sertanejos em
rádios de carros vizinhos a aguardar o verde do semáforo, buzinas agudas que
parecem não incomodar o homem que assovia Cartola sentado ao meio-fio, os
vendedores ambulantes que pelejam pelos passantes no seu frenético vai-e-vem, e
o oco das bolas de sinuca que se debatem sobre as mesas no fundo do bar.
De dentro da
loja de colchões era possível vê-la. Na calçada oposta, sentada de pernas
cruzadas – como se sentam as crianças em rodas de histórias – a mulher
vestia-se em andrajos. Tão mínimas eram suas vestimentas, que se destoavam das
apropriadas àquela terça-feira de vento gelado e sol acanhado de um meio-dia de
outono da cidade de São Paulo.
As calças eram
largas, talvez coubessem duas mulheres daquela dentro das calças, e aparentavam
ter sido, um dia, de um cinza claro – àquela hora tinham as cores de suas
manchas. A camisa vermelho-sangue não tinha mangas e deixava transparecer o
sutiã roto, que tinha a alça direita enlaçada na base das costas: um nó
improvisado pela necessidade. Tinha pés calçados pela própria casca, escura,
uma adaptação darwiniana para sobreviver ao concreto quente e atroz das ruas
que percorria todos os dias. Era só – nenhum agasalho ou gorro para aquecer-lhe
ao fim da tarde.
Tinha encostada
em seu quadril uma sacola de plástico com o nome de um grande supermercado
escrito em azul e vermelho, amarrada com vários nós. Ela, a mulher, olhava o
pequeno embrulho em intervalos pequenos, como se lá guardasse algo tão precioso
como uma vida. Dividia essa atenção com pessoas que apertavam o andar quando a
avistavam, o rosto de pele morena e muito seca e os cabelos levemente
grisalhos. A cada passante a mulher murmurava algo, mas poucos sequer percebiam
aquela miséria absoluta, a confundir-se com o chão. Seus gestos eram tímidos,
infantis até, como os gestos da desventura anônima – desprovidos de
agressividade, apesar da violência social que os gera, não causam grandes
incômodos aos olhos do mundo.
O segurança do Banco
multinacional observava, esporadicamente, aquela mulher encostada à mureta que
circundava o pequeno jardim ornamental no acesso do prédio. Estava a menos de
três metros dele, e podia vê-la em detalhes. Ali, a miséria absoluta. A
refletir uma imagem um tanto destorcida nas portas de vidro da casa monetária.
A mulher indigente, vestida em trapos naquela tarde outonal da Rua das
Palmeiras, na região central de um dos maiores centros econômicos do país, se
multiplicava nas diversas barreiras de vidro. Como se multiplica a pobreza, essa
moléstia da condição humana, durante todas as estações do ano neste imenso país
legitimamente tropical.
*Crônica publicada originalmente no jornal O Popular de Mogi Mirim, no dia 26/03/2011.
Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga emhttp://gracadesgraca.com .
Seja o primeiro a comentar:
Postar um comentário