terça-feira, 10 de janeiro de 2012

0

MAZELAS





Sim. Ela o amava. Amava sim. Tinha quase certeza. Dúvidas poucas. Como qualquer mulher. Mulher qualquer. Que duvida. Pouco da vida. Vida pouca. Se era feliz? Talvez fosse talvez não. O discernir essas coisas de felicidade e tristeza eram coisas que não se dava ao trabalho. Muito trabalho. A casa. Os filhos e o pai velho e entrevado. Mas e ele? Amava ou não?
Isso começava a lhe fazer uma “cosquinha” na cabeça. Essas coisas do amor são muito complicadas. Gostava. Gostar era mais fácil. Gostar e mais normal, mais coisa da gente. Mas amar... essas coisas de novela... não sabia. Não sabia muito disso. Achava bonito. Lindo. Era lindo o amor na novela, sentada tomando o chimarrão, o filho no colo, o Felpudo deitado aos pés. Felpudo era o cão. Vira-lata por excelência. Feio por natureza e totalmente pelado. Resultado de uma doença qualquer curada com óleo queimado.
Tudo era lindo quando ele não chegava. Bêbado. Dizendo asneira e bobagem, cantando de galo, declarando superioridade e lhe chamando de burra.
Não era burra. Sabia que não era. Apesar da escola ser uma coisa distante e passada em sua vida. Lacuna de dor e arrependimento... lia. Lia tudo e muito. Até para os filhos. Nos lixos. Muito livro nos lixos da cidade. O filho trazia. Feliz e correndo. Risada grande. Gritando “Mais um, mais um!!”. E eles iam pra baixo da laranjeira chupar laranja e ouvir as leituras da mãe. Olhos grandes de comer palavras... que a comida era pouca.
Mas ele dizia “Burra”, dizia com palavra encharcada em desdém e maldizer. Era assim, ele. Não era mau. Era?seria mau? Pensava nos tapas, coisa comum. Achava. A vizinha também levava uns. Mas gritava alto, chingava, atirava coisas na parede, atropelava com palavrão de avexar vagabundo qualquer, e “se botava” no marido. Vergonha. Ela não. Ouvia. Deixava ele se acalmar. O rosto doído. A vergonha latejando no peito. Mas agüentava. Ele estava triste. Era assim. Trabalhava mal o coitado. Injustiçado. Ele sempre dizia... garrafa de cachaça na mão, olhos vermelhos cuspindo sua dor e frustração: “Sou um desgraçado... injustiçado...” e chorava. Chorava muito. Mas antes batia no guri mais velho que vinha defender a mãe de fúria e raiva no olho e no punho magro cerrado.
Depois ele ligava a televisão e se perdia num filme e no sono. Ela dormia com as crianças. Mesma cama e dor. Mas estava acostumada. A vida...
Mas agora. Pensando em tudo. Começava a sentir uma sensação estranha. De fim de mundo. Coisa estranha e perigosa. O chão já parecia não estar lá. Abismo. Olhava a casa. E a casa a olhava com ares de patrão. Corrente. Jaula. Prisão. Estaria presa? Seria burra? Mesmo sem sentir esse tipo de dor que aflige a carne em ferimento que se mostra na carne e para os olhos de alheios curiosos, chorou. Não aquele choro de som e movimento, mas o choro do silêncio, do desfazimento da alma, da desconstrução do corpo.
E o silêncio era tudo. E o Felpudo lhe olhou dentro do olho. O cão. Pequeno, feio e amigo. E então desabou.
Rio de inundar certezas. Apanhou o animal no colo em abraço de amizade e carinho. Esperou os filhos em malas e sacolas e roupas que se iam agora pra longe.
Quando ele chegou. Olhos vermelhos e corpo etílico, encontrou só o nada. Na casa sem sombras de ninguém. Achou. Achou que estaria só. Largou-se no sofá. Na televisão o papel: “Pensei um pouco se te amava ou não... acho que amo. Fui embora. Levei os guris e o cachorro. Deixei pão e manteiga.”

Sentou-se à mesa. Pensou nos dois guris. Pensou nela. Pensou no Felpudo.
Grande silêncio. Ligou a TV e assistiu o Jornal Nacional.

Seja o primeiro a comentar: