I - A PASSAGEM
14.
A manhã tombava-se, nua e ardente nas flores amarelas da renovação. Esperava-o, impaciente, a quase duas horas, percorrendo o jardim de tantas formas e fronteiras, até acabar por enamorar-se do regato e da sombra.
- Às vezes não sei se você é aquele mesmo homem que conheci.
- Eu também já estou um pouco esquecido dele.
- Desde tua partida, a três dias, detive-me a pensar e interrogar os novos desígnios do homem.
- Afastar-nos-emos da integridade. Não teremos tanta luz e nossos braços se aviltarão ao peso da matéria.
- Pois ela é sólida.
- Também o somos.
- Não estamos legando ao melhor o nosso esforço.
- Ao necessário, ao quase operário.
- Não esqueça que cobrarão, e talvez muito caro, a guarda e a empreitada.
- Talvez, mas a alvorada se dará em outros paradigmas.
- A terceira via já terá seus príncipes e poderá facilmente designar o rei.
- O processo será violento e doloroso, a reorganização de forças fará seus golpes a saltos e galopes. Novos homens serão quase mudos e cegos da espada.
- Teremos dificuldade em percorrer a distância dos senhores de amarelo.
- Estenderão sua mão. Em algum momento, por desculpas e fatos, se aproximarão.
- Movidos pela curiosidade?
- Também, não vão querer perder o lastro da espada e da opulência na travessia da ponte.
- Difícil será a batalha para a depuração dos nervos e seus olhos. Ocorrera na terra dos homens, perdida por entre as matas vacilantes, acontecida entre irmãos e conjugados, abafada nos risos e engasgada nos seus temores.
- Pedaços de tantos corações farão a mortalha do primata e sua fada... abraçados partirão para novas revoluções.
- Quando o puro e o mago, enfim, dobrarem seus joelhos às chicotadas da fera e do lobo ?
- Arrancá-los-emos antes que se descuidem completamente O tempo ainda não terá ditado seu acordo e já estaremos reunidos na fonte de força. O íntegro quase perderá sua deixa mas estará a tempo de ombrear nossos direitos. Assumidos e em andamento estarão nossos fatos.
- Já estudarão as marcas do tempo?
- Sim, o temos quase que completamente especificado.
- Suponho que decifraram as mendicâncias do estilo.
- Jamais nos esquecemos.
- E a mim nada se dirá.
- Não, e também a mais ninguém. Quem de fato quiser aprender pode ir fazendo as leituras das tábuas, que tranqüilas, estarão nos perfumes do destino.
- Sabe-se apenas aquilo que se consegue entender e quando de fato se o quer.
- Não te parece evidente?
- Sim, mas temo-o. Só posso confiar nos meus mestres. Se me ordenam a tranqüilidade, procurarei imitá-la, já que posso, mesmo desacompanhada, acompanhar-lhes alguns sussurros.
- Quando quiser poderá nos ler a mente inteira. Porém, talvez prefira poupar-se.
- Sobre isso nada posso te afirmar.
- Todo humano demorará até ter certeza sobre o que tem e o que pode de si mesmo.
- Quando consegue fazê-lo, ou os homens param de conhecê-lo, ou percorre vertiginosamente o fim da estrada. Pois só na encruzilhada final são claros os contornos do caminho.
- Minha maga sempre soube instruir-se.
- Escalei alguns degraus sobre os meus joelhos esfolados. Às vezes percorria-os distraída, levitando à sombra da foice, sorrindo da imponência do dia. O desdém daquele que permanece às vezes nos serve de sobressalto.
- Carregue seus estandartes sem nunca mencionar-lhes a fonte, no entanto.
- Principalmente porque nunca se deve temer mais nada do que tudo.
- E mesmo a falsa modéstia é sempre melhor do que uma discreta arrogância.
- Os espias e seus ventres de sucção.
- Estarão em ¾ partes de tuas vizinhanças. Distraia-os sempre que tocarem em um pedaço de teu pergaminho.
- Elaborarei alguns códigos facilmente desmontáveis. Eu mesma nunca saberei todas as minhas sílabas. Deixarei que, livres, se expulsem do meu ventre, e que percorram suas trajetórias ao sabor dos desejos dos homens.
- Nem tudo que se elabora atinge a forma e o encanto com que nos enamorou. Saem-se muitas vezes melhor as saídas vazias, que propensas a se chocarem e retornarem assopram alguma revelação na manhã.
- Quando cair o jugo do contorno atiraremos as setas do livre arbítrio até que formem no éter os paradigmas que nos recriarão.
- E o passatempo é aquele que fica. É sem destino e coerência que se consegue acertar.
- Então é preciso saber não ser para embalar um novo canto.
- É o teste das estrelas que se despedem, que mandam para o espaço sua matéria, em busca dos novos corpos que a alimentarão.
- Sem passar por ele nada será novo e da vida só lhe restará as deformações dos acordos anteriores, suas carniças e horrores.
- Enfim é preciso saber começar.
- Mesmo sob o peso dos anos.
- Mesmo esmagado nas estórias e contos das armaduras e disfarces do tempo.
- Deixarem, então, que se regozijem os meus vazios.
- E não diga adeus, parta no primeiro sorriso dos enamorados.
Despediu-se sem as pompas da chegada. Deixou-lhe, no regaço, sua flor púrpura, prometendo-lhe fazer outras deferências em um daqueles dias que escorriam sem compromisso e destino certo.
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