quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

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A PASSAGEM 14 - JANDIRA ZANCHI

I  -  A  PASSAGEM

14.

     A manhã tombava-se, nua e ardente nas flores amarelas da renovação. Esperava-o, impaciente, a quase duas horas,  percorrendo o jardim de tantas formas e fronteiras, até acabar por enamorar-se do regato e da sombra.
-         Às vezes não sei se você é aquele mesmo homem que conheci.
-         Eu também já estou um pouco esquecido dele.
-         Desde tua partida, a três dias, detive-me a pensar e interrogar os novos desígnios do homem.
-         Afastar-nos-emos da integridade. Não teremos tanta luz e nossos braços se aviltarão ao peso da matéria.
-         Pois ela é sólida.
-         Também o somos.
-         Não estamos legando  ao melhor o nosso esforço.
-         Ao necessário, ao quase operário.
-         Não esqueça que cobrarão, e talvez muito caro, a guarda e a empreitada.
-         Talvez, mas a alvorada se dará em outros paradigmas.
-         A terceira via já terá seus príncipes e poderá facilmente designar o rei.
-         O processo será violento e doloroso,  a reorganização de forças fará seus golpes a saltos e galopes. Novos homens serão quase mudos e cegos da espada.
-         Teremos dificuldade em percorrer a distância dos senhores de amarelo.
-         Estenderão sua mão. Em algum momento, por desculpas e fatos, se aproximarão.
-         Movidos pela curiosidade?
-         Também, não vão querer perder o lastro da espada e da opulência na travessia da ponte.
-         Difícil será a batalha para a depuração dos nervos e seus olhos. Ocorrera na terra dos homens, perdida por entre as matas vacilantes, acontecida entre irmãos e conjugados, abafada nos risos e engasgada nos seus temores.
-         Pedaços de tantos corações farão a mortalha do primata e sua fada... abraçados partirão para novas revoluções.
-         Quando o puro e o mago, enfim, dobrarem seus joelhos às chicotadas da fera e do lobo ?
-         Arrancá-los-emos antes que se descuidem completamente O tempo ainda não terá ditado seu acordo e já estaremos reunidos na fonte de força. O íntegro quase perderá sua deixa mas  estará a tempo de ombrear nossos direitos. Assumidos e em andamento estarão nossos fatos.
-         Já estudarão as marcas do tempo?
-         Sim, o temos quase que completamente especificado.
-         Suponho que decifraram as mendicâncias do estilo.
-         Jamais nos esquecemos.
-         E a mim nada se dirá.
-         Não, e também a mais ninguém. Quem de fato quiser aprender pode ir fazendo as leituras das tábuas, que tranqüilas, estarão nos perfumes do destino.
-         Sabe-se apenas aquilo que se consegue entender e quando de fato se o quer.
-         Não te parece evidente?
-         Sim, mas temo-o.  Só posso confiar nos meus mestres. Se me ordenam a tranqüilidade, procurarei imitá-la, já que posso, mesmo desacompanhada, acompanhar-lhes alguns sussurros.
-         Quando quiser poderá nos ler a mente inteira. Porém, talvez prefira poupar-se.
-         Sobre isso nada posso te afirmar.
-         Todo humano demorará até ter certeza sobre o que tem e o que pode de si mesmo.
-         Quando consegue fazê-lo, ou os homens param de conhecê-lo, ou percorre vertiginosamente o fim da estrada. Pois só na encruzilhada final são claros os contornos do caminho.
-         Minha maga sempre soube instruir-se.
-         Escalei alguns degraus sobre os meus joelhos esfolados. Às vezes percorria-os distraída, levitando à sombra da foice, sorrindo da imponência do dia. O desdém daquele que permanece às vezes nos serve de sobressalto.
-         Carregue seus estandartes sem nunca mencionar-lhes a fonte, no entanto.
-         Principalmente porque nunca se deve temer mais nada do que tudo.
-         E mesmo a falsa modéstia é sempre melhor do que uma discreta arrogância.
-         Os espias e seus ventres de sucção.
-         Estarão em ¾ partes de tuas vizinhanças. Distraia-os sempre que tocarem em um pedaço de teu pergaminho.
-         Elaborarei alguns códigos facilmente desmontáveis. Eu mesma nunca saberei todas as minhas sílabas. Deixarei que, livres, se expulsem do meu ventre, e que percorram suas trajetórias ao sabor dos desejos dos homens.
-         Nem tudo que se elabora atinge a forma e o encanto com que nos enamorou. Saem-se muitas vezes melhor as saídas vazias, que propensas a se chocarem e retornarem assopram alguma revelação na manhã.
-         Quando cair o jugo do contorno atiraremos as setas do livre arbítrio até que formem no éter os paradigmas que nos recriarão.
-         E o passatempo é aquele que fica. É sem destino e coerência que se consegue acertar.
-         Então é preciso saber não ser para embalar um novo canto.
-         É o teste das estrelas que se despedem, que mandam para o espaço sua matéria, em busca dos novos corpos que a alimentarão.
-         Sem passar por ele nada será novo e da vida só lhe restará as deformações dos acordos anteriores, suas carniças e horrores.
-         Enfim é preciso saber começar.
-         Mesmo sob o peso dos anos.
-         Mesmo esmagado nas estórias e contos das armaduras e disfarces do tempo.
-         Deixarem, então, que se regozijem os meus vazios.
-         E não diga adeus, parta no primeiro sorriso dos enamorados.
Despediu-se sem as pompas da chegada. Deixou-lhe, no regaço, sua flor púrpura, prometendo-lhe fazer outras deferências em um daqueles dias que escorriam sem compromisso e destino certo.

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