1
Agora estou no centro do quarto, exatamente. Não há móveis nem tampouco uma cama: durmo no chão, coberto pela noite. Tenho alguns livros, mas já não os leio. Desisti das palavras alheias; as palavras têm um sabor acre. Poupei apenas a letra Z. Assim eu me chamo.
As paredes do meu quarto são o meu mundo. Mudo. Já não falo há séculos e a minha língua é um objeto verde. Não posso afirmar que as minhas pernas existem. Sequer posso afirmar que eu existo. Apenas meus dedos, às vezes, desenham um nome no ar. Eu sorrio por isso, e por isso me vêm as recordações. A memória é um instrumento da dor. E as recordações são flechas que atravessam a alma. Tenho muitas.
2
No meio da rua. Os rostos à minha volta eram todos e um só. Devoravam-se. A pergunta, inevitável: algum nome? A resposta, inevitável: multidão.
Ana me surgiu do meio desse hospício. Seu rosto descolou-se dos outros apenas para que eu o visse. Sua boca derramou um sorriso e depois naufragou nas ondas daquele oceano mudo e célere. Guardei seus traços no coração.
Marianna, Virgínia, Bruna, Thaís. Conheci todas elas. Nenhuma delas me conheceu. Bebi o segredo de todas elas. Nenhuma saciou minha sede.
Ana. Por que Ana?
Por que seu rosto surgiu de uma massa informe onde os rostos não existem, não são admitidos?
Arrastei essas perguntas pelas ruas onde a procurei. Inútil esforço: fui encontrá-la num lugar tão improvável quanto o primeiro: em meu quarto.
— Curioso? — perguntou ela. Trazia um livro, tão delicado quanto suas mãos.
Ofereci-lhe um chá. Ela recusou. Sentei-me então para ouvir. Ver. Para acreditar.
— Isto é pra você — disse ela colocando o livro num canto. — Mas não deve lê-lo nem tocá-lo. É a condição que imponho pra ser sua.
Concordei com a cabeça. Ana sorriu: era minha.
— Eu tenho todos os vícios — continuou ela. — O pior deles é crer nos homens reais.
— Meu nome é Z — falei. — Eu não sou real.
Ela riu.
— Eu era o único em casa a comer carne na sexta-feira santa — continuei. — Nos outros dias do ano isso era insuportável para mim. Mas nesse dia era importante: mamãe insistia em dizer que era o corpo de Cristo. Eu adorava cometer esses pequenos crimes em família.
— Eu — falou Ana —, eu costumo cortar os meus pulsos quando estou feliz. Preciso de um homem para beber o meu sangue.
Foi a minha vez de rir.
— Já li isso num livro — falei.
Ana agarrou minha mão. Trazia cicatrizes vermelhas no braço.
Fomos então para a rua. Um bar. Ela acariciava minhas pernas sob a mesa.
— Nasci num pequeno quarto e sou antiga. Meu pai me criou e depois entregou meu corpo ao mundo. Conheci muito cedo os homens e os conflitos. Viajei pela terra, vendi minhas pernas e minha alma nos portos onde permaneci algum tempo. Comi poeira. Matei. Morri mil vezes. Apaixonei-me por uma menina e por um padre. Tive dois cães. Li e amei ardorosamente alguns poetas. Fiz de mim o mundo. E chorei e sorri. A figura do meu pai, porém, sempre me pareceu próxima demais. Ela me persegue, é o castigo quando ouso ser feliz. Fui rica algumas vezes, amante de presidentes e esposa de imperadores. No entanto, neles eu encontrava sempre algum traço do meu pai: queriam me usar e exibir, guardar meu corpo num armário para que ele permanecesse jovem e pronto para outra festa. Não eram homens de verdade. Conhaque?
Sua mão estava dentro da minha calça. O garçom nos olhava como se nada visse.
— Não — respondi. — Eu gostava do álcool porque ele me fazia esquecer. Passou o tempo: esqueci-me dele.
Frase inútil. Ana disfarçou com um sorriso mil anos ensaiado.
— Ana. Por que Ana?
— Como sabe?
— Sorte. Acaso, talvez. Aprendi que aqui tudo é possível. Mas agora conheço sua história. Gostaria de conhecer o seu avesso.
O copo encobriu rapidamente os seus lábios. A luz brilhou no cristal.
— Você já conhece. O avesso de Ana é anA.
Sorrimos. As carícias sob a mesa despertaram o rubor em algumas senhoras. O bar então tremeu: um escritor conhecido entrou. Cumprimentou a todos com ironia disfarçada e ocupou uma mesa ao nosso lado.
— Meu pai era dessa espécie — falou Ana.
— O meu também — confessei.
Nossos olhares se cruzaram no ar. Ana e eu. Como nos conhecíamos tanto e há tão pouco tempo? Seríamos verdadeiros ou falsos? Eternos? Nomes escritos num caderno e apagados por uma lágrima?
— E por que o seu nome é Z? — perguntou ela.
— Economiza letras. E desgostos. Uma letra só não tem sentido.
Em sua mesa, o escritor sorriu.
— Ou tem muitos — falou Ana.
Deixei algumas moedas sobre a mesa e fomos para a rua. O escritor nos lançou um olhar e uma despedida silenciosa. Algumas senhoras suspiraram, aliviadas. O garçom instalou outro casal em nossa mesa.
Contornamos uma praça e em seguida subimos ao meu quarto. Ana sentou-se à janela e a lua se acendeu, amarela e redonda. Eu estava feliz: uma mulher, Ana, e a lua.
— Você existe? — perguntei, rompendo o silêncio.
Ana sorriu, trepidante. Seus seios balançaram com fúria.
— Por que destruir o que pode ser belo com palavras tão estúpidas? — falou, irritada.
Palavras. Abracei-a e bebi os seus lábios. Gosto de papel. Calor. Na cama, entre os lençóis, a lua: um convite.
Na madrugada, o livro saltou-me dos sonhos. Por que eu não poderia lê-lo nem tocá-lo?
Encontrei-o esquecido no chão. Ana ainda dormia. Lembrei-me das suas palavras, mas não pude resistir à minha curiosidade. Procurei então a última página e li:
Ana já sabia, já esperava. Conhecia os homens. Mesmo assim, sentiu-se ferida pela traição de Z e partiu. Nenhuma lágrima, só dor. Uma dor antiga. A multidão então devorou seu rosto. Mais uma vez.
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1 Comentário
Eu adoro esta história. Ana, de frente para trás sempre a mesma coisa!!! Grande abraço, é sempre um prazer ler-te.
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