quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

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Inseto maldito



Diogo veio caminhando lentamente e sentou-se à sombra da mesma árvore. Deixou suas coisas ao lado. Era um dia quente, quase hora do almoço, céu aberto e a beleza das montanhas que o rodeava.

Ele tirou a palha de um bolso e o fumo e o canivete de outro. Com a experiência e a calma que lhe eram características, começou a trabalhar no antigo projeto do cigarro perfeito.

Antonio veio caminhando lentamente e sentou-se à sombra da mesma árvore. Olhou para o alto e depois para baixo. Antonio perguntou à Diogo sobre Pedro como quem já sabia a resposta. E Diogo acendeu o cigarro com a certeza de quem deu passos no caminho que escolheu.

Ele disse que um inseto tinha picado Pedro como se fosse uma abelha. No começo tudo era normal, como a dor e a coceira. Mais tarde não era assim. E Antonio olhou para o alto. E depois para baixo. Diogo disse que era difícil mesmo para contar. Ele disse que era, na seqüência da sucessão dos fatos, como que um outro jeito de ver as mesmas coisas. Uma mudança de cabeça.

Diogo tragou forte e permaneceu um pouco em silêncio. Depois disse que, apesar de tudo, o mais triste é que quase nada mudou. Quando ele olhava no espelho era como se os cabelos saíssem do pescoço, como uma barba muito espessa. O alto do rosto quase careca e a estranha sensação da boca disposta mais alta na face que os olhos. Antonio olhou para o alto e depois para baixo. As orelhas e o nariz alinhados como deveria ser, mas nem tanto. E, como se preparasse a cartada final, Diogo disse: O rosto de cabeça para baixo.

Começou a ventar. Diogo tragou forte e calou-se por um instante. Antonio quieto, ouvindo. Diogo disse que era sobre algo que as pessoas não viam, mas que Pedro não podia deixar de notar. E então começaram os problemas. Máscaras para andar na rua e a cidade toda estranhou. Ele tentou explicar para a mulher, mas ela também não via e não achava necessário. E depois o medo de morrer afogado se babasse. Tomar tudo de canudinho. Os amigos do bar estranharam. As brigas, a mulher se foi, o emprego se foi. Antonio olhou para o alto e depois para baixo.

Diogo tragou fraco, prendeu o cigarro entre o polegar e o indicador e o arremessou longe. E foi só. As nuvens cobriram o céu. Antonio despediu-se, olhou para o alto, depois para baixo, e foi caminhando lentamente. Em casa Maria serviu o almoço e ele disse que a amava, apesar de tudo. Quando saiu para o trabalho, levou consigo o guarda-chuva. Com medo de morrer afogado.

Dormindo debaixo da árvore, Diogo acordou assustado com um trovão. Saiu correndo com o polegar e o indicador tapando as narinas.


Conto extraído de “As Cinquenta Primeiras Criaturas”, Jorge Xerxes, 150 pp, Editora Multifoco, ISBN: 978-85-7961-109-4, (2010).

1 Comentário

andre albuquerque

Jorge: um mosquito entre duas realidades;abração,André