terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

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Perigo




O sol estava como se não estivesse. Sombrio o dia. Espaços delimitados de calor e luz. Fracos. Débeis. A cor era o cinza. Assim como o espírito. Cinza.
E caminhava por aqueles dias mortos. Passos arrastados. Olhos cinzas. Quarenta e sete anos cinzas. A tentativa do sorriso foi um fiasco. Não sabia rir. Nem mesmo com sarcasmo. O sorriso fora impugnado, interditado. Definitivamente não sorria. Caminhava. A barba espessa sufocando. Vegetação selvagem. O animal ressurgindo. A razão indo. Só a sobrevivência. O comer de cada dia. O respirar. O peso do lixo. Caixas e caixas de papelão. Montanha arrastada pelas ruas da cidade. Tartaruga humana. Dores que se ramificavam por todo o corpo. Músculos. Mãos calosas. Homem-cavalo, cavalo-homem. Arrastava e era arrastado pelas ruas. Baleia e Lambaria eram os amigos. Cães. Os humanos não. Não gostava dos humanos. Eram maus. Todos. Os cães não. Esses eram amigos. Baleia veio do livro. Do texto encontrado no lixo. De um tal de Fabiano de um tal de Graciliano. Sempre lia os livros que encontrava. Livros em pedaços, molhados. Novos também. Muitos. Não entendia muito. Mas gostava. Não era burro. Sabia ler. E ali encontrou a Baleia. Lambari veio depois. Ambos pretos. Baleia grande e brava, Lambari pequeno e barulhento. Baleia no chão, ao lado. Quieta. Lambari na carroça. Preguiçoso. Provocador. Ele gostava.
Divida a comida encontrada. Comia pouco. Na verdade nem tinha fome. Comia por uma necessidade do corpo, de um roncar de estômago que lhe avisa. Nômade. Decidira que não moraria jamais em uma casa. E morava na rua. Encostava a carroça em um beco. Fazia uma pequeno fogo. Cozinhava o que podia em uma panela que trazia amarrada na carroça e pronto. Mas antes tinha. Tinha uma casa sim. Pequena. Mas era dele. E tinha uma mulher. Dona Enilda. Um dia Enilda disse que era pra ele ir embora que não lhe tinha mais amor. Ele argumentou que talvez fosse melhor ficarem juntos. As coisas estavam difíceis. E então ela disse que tinha outro. Que ele ia morar com ela. Que ela queria. E como tinha um guri que ficaria com ela, nada mais justo que ele fosse embora. Nem chorou. Nem se desesperou. Quando foi embora arrastando a carroça vazia, ela fechou a porta. Tinha acabado tudo. Tudo. Morava num bairro onde a pobreza e a promiscuidade eram o chão onde todos pisavam. O papelão vendia. Para O João Maneta. Homem baixo e gordo. Desdentado. O Maneta comprava tudo. Gostava dele. Dava conselho. Emprestava uns trocados. Atirava uns pãos pra Baleia e pro Lambari. Ele gostava.
Mas não dormia no centro. Nunca. Gente má. Gurizada do diabo. Conhecia uns que tinham sido queimados. Outros espancados. A policia ria. Fazia cara de preocupação quando os jornalistas chegavam. Mas riam muito e faziam piada quando iam embora. Não. Ele saia da cidade. Do centro. A partir das cinco horas da tarde ele começava a sair. Só parava quando o lugar era mais calmo. Tranqüilo. Descampado.  Preferia os bichos. Cobra, aranha, escorpião. Tubo bicho melhor que o homem.
Foi em uma destas vez que encontrou ele. Braços abertos. Boca aberta. Peito aberto. De bala grande. Buracão no corpo. Morte. Bem vestido. Cheiro de gente importante. Primeiro foi o susto do corpo em braços de abraço de morte que pretendia dar. Recuou. Pensou em correr. Baleia e Lambari cheiravam. Farejavam. “Sai, sai.” Ralhara com os amigos. Em pés curtos de relutação, aproximou-se do morto. Carteira. Dinheiro. Relógio. Nada. Não tinha nada. Era como se o enorme buraco no peito tivesse consumido tudo. Resolveu afastar. Separar seu corpo morto daquele outro. Mas Lambari entrou em um pequeno matagal. Farejando. Logo Baleia sumiu atrás. Ele resolveu ir junto. E foi então que encontrou. Guardou no meio de um papelão que dizia perigo. Amarrou com barbante e guardou bem no fundo na carroça. E tremeu. E fugiu. Medo. Do morto e da polícia. Da polícia e de quem matara o outro. O morto.
A vida era estranha. E disso ele sabia. A sua nem vida era. Espécie de resistência. Permanência. Impertinência. Mas e daí. Não se lamuriava. Era mais um bicho que gente. E sabia disso. E gostava.
Quando a lua abriu o olho e o viu lá embaixo. Baleia e Lambari correram. correram muito. Na frente. Ele parou. Medo? Dobraram uma esquina e latiram. Latiram mais forte. Baleia rosnou. Latiu. Ganiu. Lambari alucinado latia. Ele agarrou firme os braços da charrete e puxou com força todo o seu precioso lixo. Parou. Estancou. Baleia estava estirada no chão. Lambari furioso latia para três homens. Uma mulher estava caída. Atrás dos homens. “Vai andando mendigo!”  gritou uma voz que veio de um rosto que não se via. Baleia gemia.
A mulher gemia. “Vai indo ou a gente te queima!” e riram. E foi neste momento que ele pensou que realmente as coisas eram engraçadas. E que a vida é muito estranha. Não estava nem com raiva, nem furioso. Mas ia fazer aquilo. Era como se tudo já estivesse predestinado. “Sai fora imundo!” O brilho de uma faca cintilou. E o que falava deu dois passos para frente. Foi ai que ele enfiou a mão no meio dos papelões e pegou o pacote. Perigo. Rápido puxou o grande revólver. Negro e poderoso. A bala foi cuspida com raiva. Diferente do que sentia. A arma tinha seus próprios interesses. Seu próprio sentimento. E um grande buraco abriu-se no peito do primeiro. Medo. Os outros dois tentaram fugir. O segundo tropeçou na mulher. Caiu. Ao levantar-se recebeu o projétil na nuca. Sangue. O outro tentou argumentar. Abanava as mãos. Fazia cara de coitado. Pensou em não matar. Mas Baleia gemeu. A mulher. Encolhida. Gemeu. Puxou o gatilho. Apanhou a cadela e a colocou da carroça. A mulher o olhava. Ele olhou fundo nos olhos da mulher. Colocou a arma dentro do papelão, amarrou novamente e largou ao lado da mulher. “Perigo”.

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