O PINTO MORTO DE DEDÉ
“Aaahh! Mamãe, ma... mãe! O Amarelinho!
O Amarelinho, mamãe... ele... ele morreu, mamãe!” – Dedé chorava com o pinto estatelado
sobre a palma de suas mãozinhas trêmulas. Ao mesmo tempo em que a tristeza
incitava-lhe as lágrimas, a menina esticava os bracinhos sobre o colo da mãe
como se quisesse livrar-se do cadaverzinho
que encarava com certa aversão. A mulher pegou o pinto e colocou-o sobre a
banqueta para abraçar a filha. “Eu não entendo, mamãe... eu dei tanto carinho
pra ele, eu abracei tão forte...”. A mãe então soltou a menina por um instante,
fitou seus olhinhos afogados e puxou-a novamente ao abraço.
Os primos, alertados pelo berreiro angustiado,
já tinham largado as traquinagens no quintal e rodeavam a banqueta. Examinavam o
pinto com curiosidade, cutucavam, assopravam as penas ralas. Dedé era a única
menina dentre os cinco primos, e também a mais nova – sem dúvidas, a mais paparicada
pelos adultos, o que fazia acender os ciúmes e alguns atos de leve crueldade
dos meninos, muitas vezes disfarçados em cuidados. Por isso mesmo o primo mais
velho abraçou Dedé quando a mãe se afastou para pegar uma caixa de sapatos para
o enterro do pinto morto. E, também por isso, ele olhou a menina nos olhos e
disse “O Amarelinho não morreu, eu vi a patinha dele mexer agora!”.
Os olhos da menina brilharam quando as
palavras do primo beijaram seus ouvidos. Ela afastou o abraço com carinho,
enxugou as lágrimas e olhou para o animalzinho imóvel. “Ele tem que tomar ar,
Dedé, para viver de novo. Vamos levar lá fora, no quintal, perto da árvore
velha”. A menina consentiu com um aceno e o primo agarrou o pinto pelas
patinhas. Correram Dedé, o primo mais velho e os outros três para a sombra do abacateiro.
Colocaram o animal no chão e esperaram. Nada. O pinto continuou com as
perninhas duras e a cabecinha tombada.
“Dedé, ele tem que voar. Ele tem que
sentir o vento, Dedé, para poder saber que está vivo e acordar”, disse o primo
com os olhos firmes a encarar os olhões abertos da prima. “Mas pinto não voa,
Beto. Ele não vai voar”. “Voa sim” – interveio outro primo – “Galinha voa
baixo, mas voa. É um pulo meio voado, entende, Dedé? Deixa o Beto mostrar como
o Amarelinho pode viver de novo se voar”. A menina, que nunca tinha visto pinto
voando, desconfiou dos primos. Olhou para a casa, se a mãe viesse logo poderia
perguntar a ela. Mas cada dúvida de Dedé era um tempo a menos para Amarelinho.
Então, com certeza de gente grande nas palavras, disse: “Está bem. Podem fazer o
Amarelinho voar!”.
Ah, Dedé... Se você soubesse, menina,
o que havia acabado de consentir...
Os lábios do primo mais velho se
contraíram lentamente, desenhando um sorriso lateral debochado. E foi então que
Dedé percebeu o que sua inocência havia permitido. Não deu tempo, mas se
tivesse dado a menina não o teria impedido, pois a descarga de adrenalina fez
seu corpo pequeno cair de joelhos. Beto agarrou o pinto pelas patas, levantou-o
à altura dos olhos e disse: “Vai voar, pinto morto!”. E então atirou
brutalmente o pequeno cadáver contra o tronco do velho abacateiro, e o pinto
caiu retorcido no chão.
A menina, que naquele exato momento
teve a ingenuidade violentada pela crueldade do primo, agarrou um pedaço de
tijolo que compunha o cercado da horta da avó e saltou em cima dele a lhe desferir
golpes na cabeça. Os outros primos começaram a gritar, tentaram agarrar a
priminha, mas ela grudou na camiseta de Beto. Quando a mãe chegou ao quintal,
alarmada pela gritaria, o menino sangrava muito e tinha os olhos fechados, a boca
aberta. Não mais lutava contra os golpes da prima.
A mãe berrou e Dedé tombou para o
lado, assustada. Encarou o primo querido enquanto deixava cair das mãozinhas o
pedaço vermelho do tijolo. Olhou para a mãe, que recolhia o garoto no colo, e era
possível reconhecer em seu olhar todo o desconhecimento do que havia antecedido
aquele momento, a confusão e a aversão angustiada ao olhar para as mãos – o
mesmo sentimento que tivera com o pinto morto. Os primos correram atrás mulher,
que tinha Beto já consciente nos braços, e a menina ficou inerte no chão, ao
lado do sangue e do pinto estatelado.
Ah, Dedé... Se você soubesse, menina,
que para destruir a inocência de um coração basta apenas outro que já tenha se
partido alguma vez... Se você soubesse...
Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com .
2 comentários
passando para ler tudo! abraços.
Sensacional!
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