quinta-feira, 22 de março de 2012

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CONTAÇÃO: "O pinto morto de Dedé" (por M.Mei)



O PINTO MORTO DE DEDÉ

“Aaahh! Mamãe, ma... mãe! O Amarelinho! O Amarelinho, mamãe... ele... ele morreu, mamãe!” – Dedé chorava com o pinto estatelado sobre a palma de suas mãozinhas trêmulas. Ao mesmo tempo em que a tristeza incitava-lhe as lágrimas, a menina esticava os bracinhos sobre o colo da mãe como se quisesse livrar-se do cadaverzinho que encarava com certa aversão. A mulher pegou o pinto e colocou-o sobre a banqueta para abraçar a filha. “Eu não entendo, mamãe... eu dei tanto carinho pra ele, eu abracei tão forte...”. A mãe então soltou a menina por um instante, fitou seus olhinhos afogados e puxou-a novamente ao abraço.

Os primos, alertados pelo berreiro angustiado, já tinham largado as traquinagens no quintal e rodeavam a banqueta. Examinavam o pinto com curiosidade, cutucavam, assopravam as penas ralas. Dedé era a única menina dentre os cinco primos, e também a mais nova – sem dúvidas, a mais paparicada pelos adultos, o que fazia acender os ciúmes e alguns atos de leve crueldade dos meninos, muitas vezes disfarçados em cuidados. Por isso mesmo o primo mais velho abraçou Dedé quando a mãe se afastou para pegar uma caixa de sapatos para o enterro do pinto morto. E, também por isso, ele olhou a menina nos olhos e disse “O Amarelinho não morreu, eu vi a patinha dele mexer agora!”.

Os olhos da menina brilharam quando as palavras do primo beijaram seus ouvidos. Ela afastou o abraço com carinho, enxugou as lágrimas e olhou para o animalzinho imóvel. “Ele tem que tomar ar, Dedé, para viver de novo. Vamos levar lá fora, no quintal, perto da árvore velha”. A menina consentiu com um aceno e o primo agarrou o pinto pelas patinhas. Correram Dedé, o primo mais velho e os outros três para a sombra do abacateiro. Colocaram o animal no chão e esperaram. Nada. O pinto continuou com as perninhas duras e a cabecinha tombada.

“Dedé, ele tem que voar. Ele tem que sentir o vento, Dedé, para poder saber que está vivo e acordar”, disse o primo com os olhos firmes a encarar os olhões abertos da prima. “Mas pinto não voa, Beto. Ele não vai voar”. “Voa sim” – interveio outro primo – “Galinha voa baixo, mas voa. É um pulo meio voado, entende, Dedé? Deixa o Beto mostrar como o Amarelinho pode viver de novo se voar”. A menina, que nunca tinha visto pinto voando, desconfiou dos primos. Olhou para a casa, se a mãe viesse logo poderia perguntar a ela. Mas cada dúvida de Dedé era um tempo a menos para Amarelinho. Então, com certeza de gente grande nas palavras, disse: “Está bem. Podem fazer o Amarelinho voar!”.

Ah, Dedé... Se você soubesse, menina, o que havia acabado de consentir...

Os lábios do primo mais velho se contraíram lentamente, desenhando um sorriso lateral debochado. E foi então que Dedé percebeu o que sua inocência havia permitido. Não deu tempo, mas se tivesse dado a menina não o teria impedido, pois a descarga de adrenalina fez seu corpo pequeno cair de joelhos. Beto agarrou o pinto pelas patas, levantou-o à altura dos olhos e disse: “Vai voar, pinto morto!”. E então atirou brutalmente o pequeno cadáver contra o tronco do velho abacateiro, e o pinto caiu retorcido no chão.

A menina, que naquele exato momento teve a ingenuidade violentada pela crueldade do primo, agarrou um pedaço de tijolo que compunha o cercado da horta da avó e saltou em cima dele a lhe desferir golpes na cabeça. Os outros primos começaram a gritar, tentaram agarrar a priminha, mas ela grudou na camiseta de Beto. Quando a mãe chegou ao quintal, alarmada pela gritaria, o menino sangrava muito e tinha os olhos fechados, a boca aberta. Não mais lutava contra os golpes da prima.

A mãe berrou e Dedé tombou para o lado, assustada. Encarou o primo querido enquanto deixava cair das mãozinhas o pedaço vermelho do tijolo. Olhou para a mãe, que recolhia o garoto no colo, e era possível reconhecer em seu olhar todo o desconhecimento do que havia antecedido aquele momento, a confusão e a aversão angustiada ao olhar para as mãos – o mesmo sentimento que tivera com o pinto morto. Os primos correram atrás mulher, que tinha Beto já consciente nos braços, e a menina ficou inerte no chão, ao lado do sangue e do pinto estatelado.

Ah, Dedé... Se você soubesse, menina, que para destruir a inocência de um coração basta apenas outro que já tenha se partido alguma vez... Se você soubesse...


Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com .  

2 comentários

Cássio Amaral

passando para ler tudo! abraços.

Leo

Sensacional!