sexta-feira, 1 de junho de 2012

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A autopista da praia


Ao meu lado, tão linda , a beleza flagrada em pleno sono ; um corpo entregue á própria lassidão , neste casulo de ar condicionado  e silencio , a duzentos quilômetros por hora.
A pista , agora uma reta sem fim ,os pneus produzem um som de água correndo,a paisagem pouco mais que borrões verdes na minha retina . Pequenas cidades e povoados surgem e desaparecem,no zapear da velocidade ,são figuras que vão se amontoando lá para trás , comprimidas    pelo vácuo em suas vidas tranqüilas e pacatas . A bela Inês repousa  do mundo bárbaro .

O caderno sobre o colo , a caneta presa na espiral e servindo de marcador , a regularidade dos traços  rafaelitas , acima  do bem e do mal , aprisionados num clic de máquina fotográfica . Os seios de talhe perfeito , maciços, estufando a camiseta no relevo de mamilos divinos , ainda eriçados pelo frio .Uma deusa pós moderna, Pégaso no braço , tentando alcançar o sol de hena e raios trêmulos, na  vida sem literaturas.

Há dois dias atrás depois da aula ,abracei-a e beijei-a ; um abraço  de náufrago ,um ismael indefeso , agarrado   ao esquife do companheiro , mas tragado para sempre ,para dentro daqueles olhos castanhos e subitamente  inexpressivos ,límpidos.A calma suprema de quem contempla uma explosão muito longe,anos – luz de frio  distanciamento  emocional  e compaixão zero,impossível de fingir , pois fingir nunca foi o seu forte ;  durante alguns anos ,foi minha fortaleza o fingimento, aturar a mulher que não me amava mais , um casamento natimorto sem descendentes a celebrar meu grande vazio. A natureza abomina o vácuo – nem lembro mais quem falou ; surgiu Inês em minha vida , uma neo – -realidade suburbana , a sensualidade safadinha , sexo na cabeça e na alma ; chutei o  pau da barraca , fiquei sozinho do jeito que nasci, segurei pelos longos cabelos , aquela oportunidade de provar que ainda estava vivo  e buliçoso .

 Nunca moramos juntos , assim exigiu , assim existimos . Dois anos e uma crônica de amor louco para sempre inédita , pois nunca escrevi nada a respeito do amor , além da sala de aula , dos modernos cânones literários ,o suficiente para o vestibular de qualquer coisa que termine em contra cheque regular e aposentadoria decrépita e vazia ,melhor dizendo,até um ex–namorado  ressurgir do reino das sombras e cravar a estaca  no  meu peito arfante de quarenta roliúdes por dia . Estrepitosamente , ridiculamente, caí de quatro, tomando todas , cafungando, sempre a chafurdar na própria merda . Não sei quanto tempo fiquei nesse  esgoto , até que resolvi metabolizar aquilo tudo ; marcamos  um encontro na praça em frente do cursinho  ; esperei – a num tesão de ansiedade juvenil .

Chegou linda ,sorridente, beijou-me de leve, um beijo de lápide funerária , que me virou pelo avesso um abraço cem por cento angústia dor de corno em estado de arte .Comemos um sanduíche na lanchonete  em frente,convidei –a para  uma volta de carro ; aceitou   constrangida  , rodamos  um pouco pelo centro ; do rádio ,Stevie Wonder e Superstition não  me  deixavam  espaço pras abobrinhas ,a mente funqueava á toa ,gaguejava pensamentos e fragmentos .Na verdade não tinha mais nada a dizer,muito menos ouvir , percebi ao contemplar- lhe o  perfil . Parei e pensei . Olhei - a bem nos olhos grandes, acariciei seus cabelos e atirei entre os seios ; aquele rosto não merecia ser estragado . Ela simplesmente virou a cabeça para a janela e mergulhou no sono profundo . Dei partida , peguei a autopista da praia  e segui em frente ; há dois dias viajo com   a rainha morta , Inês,que seria de Castro se um rei traído não fosse eu e fossem as pessoas  nas ruas , obrigadas a beijar- lhe as mãos , tão  belas e frias , em muda admiração.

6 comentários

Jorge Xerxes

André, Meu Amigo,

Sem Palavras: Simplesmente Brilhante!

"...ressurgir do reino das sombras e cravar a estaca no meu peito arfante de quarenta roliúdes por dia."

Um Forte Abraço, Jorge

andre albuquerque

Jorge: grato pelo olhar preciso, o estímulo tão importante para seguir em frente nesta vida,onde olhares estendidos além do próprio umbigo são cada vez mais raros.Forte abraço , André

regina ragazzi

Seu conto tem um realismo que chega a ser assustador.Bom demais, demais. Abraços.

andre albuquerque

Regina, grato pela leitura e comentário. Abraço.André

Betusko

Caro André,
Agora só falta coroar a rainha morta.
Um conto competente. Parabéns!

andre albuquerque

Betusko: grato pelo comentário .Grande abraço,André