quarta-feira, 20 de junho de 2012

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Fuga - Milena Martins

Há espaço vazio na casa ao lado.

Sei disso porque nenhum ruído atravessa as paredes geminadas. Não há televisão na casa ao lado. Não há rádio. Não há despertador early in the morning. Não há liquidificador, batedeira, geladeira, máquina de lavar. Não há gato arranhando a porta pra entrar. Não há torrada pulando quando pronta. Nem baratas correndo pelo chão. Nada preenche o espaço da casa ao lado.

Vazio e vazio é o espaço da casa ao lado.

E a casa ao lado é tudo o que há.

Porque a casa em frente foi demolida. A casa de trás incendiou. Do outro lado, há a floresta. Cruzando a esquina, há o abismo. Cruzando a rua, a escuridão. Vivo só em um universo despovoado cujo Deus não me decepou costela. Mas me deu a audição. E nenhum ruído. Apenas a consciência do haver música. Por mim ouvida em algum tempo. Outro. Algum lugar. Outro. De que já não consigo me recordar.

Acordo cedo. Ando pelos cômodos vazios. Nada tenho nesta casa grande e ainda maior porque nada contém. Sento no chão com as pernas cruzadas e quero cantar. Mas nada vem. O que é bom. O que demonstra a piedade de Deus. Porque é melhor esquecer todas as canções. Apesar de sabê-las existentes. Já que não tenho voz pra que saiam de mim.

Não falo. Fixo os olhos pra tentar ver melhor as manchas das paredes. Invento histórias em seus traços disformes. Acabo de bater um fusca contra um muro de pedra. O motorista se salvou, sua filha morreu. Os bombeiros estão chegando. A sirene está ligada. Reviro os olhos de contentamento, sou toda branco entre pálpebras, verde jogado pra trás. Porque recordo o som, um berro mecânico, a sirene. E quase choro, mas começo a gargalhar.

Os flamboyants não têm pássaros. O inverno não tem vento. Não há cães, não há carros, não há passos, não há ninguém. Não há som.

Espero alguém vir me salvar do silêncio. Ou da memória da música. Vir me trazer a cura. Ou me levar a memória da voz. Grave e forte, fina e estridente. Que um dia foi a minha. E que luto por esquecer. Pra que seja fácil suportar o vazio.

O vazio da casa ao lado.

Única esperança. Porque pode se encher. Um dia.

A casa ao lado é minha única esperança. A mentira da esperança. Que é melhor que a certeza. Porque suspense não é decepção.

Sustento. A esperança é meu sustento. Minhas fibras de arame por dentro do corpo de plástico recheado de vento em que me arrasto no silêncio. Tentando sugar o ar. Pra me fundir ao vazio.

Até o som da porta ao lado se abrir.

2 comentários

Jorge Xerxes

Milena,

Um Ótimo Texto!

Gostei Especialmente dos Cinco Primeiros Parágrafos, e deste, destacado abaixo...

"Espero alguém vir me salvar do silêncio. Ou da memória da música. Vir me trazer a cura. Ou me levar a memória da voz. Grave e forte, fina e estridente. Que um dia foi a minha. E que luto por esquecer. Pra que seja fácil suportar o vazio."

Um Beijo! Jorge

Unknown

Jorge,

Obrigada pela leitura e pelo comentário. Fico muito feliz que tenhas gostado de meu conto.

Grande abraço,
Milena.