domingo, 1 de julho de 2012

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De como James Joyce me salvou a vida


                                           

Sozinha naquele mundo de apartamento . Doze anos de serviço, salário mínimo ,cara feia e garrafa de cidra no fim do ano , para beber num copo de requeijão.Dessa vez , um feriadão de quatro dias, a ordem da patroa de ficar em casa e providenciar um jantarzinho para uns amigos do patrão, que  retornariam com eles   do interior. Providenciar é preparar sozinha aquela comida toda do freezer, pra servir no domingo á noite , enchendo a barriga daqueles imbecis , que no final , fumariam  seus charutos fedorentos , cortados á tesoura  baforando nas caras lisas e  pretensiosas, uns dos outros .
.Até que eu gostava das crianças, não deram trabalho para crescer , tinha outra escrava me ajudando , mas voltou pra terra dela, dizendo que era melhor a tal de bolsa família que ficar bestando na cidade grande ,.Eu fiquei, porque voltar pro interior era cuspir pra cima, andar de lado feito caranguejo, com ou sem bolsa ou sacola – família .
 Não , jamais voltaria aquele mundo parado, feito água de chuva empoçada até virar lama . Além do mais , Vadinho já ligou duas vezes dizendo que vai dar um pulo aqui.Conheci- o há duas semanas. , na praia de Olinda , na barraca do Tio Pepe, tomando caipirinha com caldinho de feijão . Tarou nas minhas coxas e eu  naquela cara safada , barriga saradinha e pernas iguais ás do Ronaldinho .Tiramos no Las Vegas, o sal do banho  de mar ,num chuveirão muito gostoso e  meia - diária de transa doida ,  um querendo devorar o outro naquele redemoinho de tesão .
 Hoje eu mereço estar aqui, sentada, um copo de scotch numa mão e um charuto cubano na outra , no meu vestido mais sexy , lingerie nova já na última prestação este mês; assistindo um ótimo filme de putaria na HD dos patrões,que a essa hora, devem estar em algum lugar , arrotando faisão o peito de frango que servi no almoço .Vez por outra, dou uma tossida, esse charuto parece os de pacaia lá do Cabrobó , mas que dá uma pose arretada, isso dá .
O filme é porreta;mas filme de putaria é tudo a mesma coisa,é até ruim se fizer diferente, feito coisa da globo.É pra gente ver e se inspirar . Miguelão avisa pelo interfone que o senhor Vadinho está subindo... . Êita porteirinho escroto , gosta de meninos , anda de brinquinho de chifre, mas na portaria, maior moral .Tiro o DVD e ligo na novela das oito . Ás vezes doutor Marcaurélio diz que a noite é uma criança ; hoje, pra mim , acho que é mesmo , quem sabe, até nascida de sete meses .Chegou o meu gostoso . Lindo, cheiroso e tesudo , uma beca que deve ter levado uns três meses de salário; beija-me ligeirinho , dá um belo fiu-fiu olhando o  apê e afunda  no sofá , do meu lado .Levanto , pego um champanhe do patrão , quase que não abro , a bexiguenta dá um pipoco  arretado mas assim é que bom , fica igual àqueles sacanas nas festinhas só deles.
 Volto pra sala, Vadinho estira duas carreiras de pó encima da foto emoldurada da patroa,agora com uma bela e dupla faixa branca sobre o peito , que corre pra dentro do nariz dele e do meu , sinto uma grande vontade de rir, de dançar solto, agarradinho, tudo de uma vez só, rio com tudo e com nada ; Vadinho virou a champanhe , diz que um uísque é melhor , boto o DVD de putaria , começamos a tirar a roupa, ele quer transar encima do sofá, mas eu o levo pra cama da mocréia, beijamo-nos da cabeça aos pés, engatamos uma meia nove , transamos , viro de lado já na morgação da transa ; Vadinho se levanta, cara esquisita , olhos vermelhos de cão danado , quebra o abajur da patroa no chão , puxa meu braço, queima com a ponta  do cigarro, pergunto que exu baixou nele, levo um pontapé no estomago e um tapa no rosto.
Corro da cama , entro no gabinete do puto do meu patrão, ele tenta entrar , jogo meu corpo contra a porta, agora é o diabo no meu redemoinho,ele força a porta mais um pouco, escorrega, a cabeça consegue passar pela brecha; próxima da estante, pego um livro que parece um tijolo,desses que doutor Marcaurélio usa escorando a porta , descarrego na cabeça do miserável, que cai espumando, feito cachorro doido . Saio do gabinete ,nas mãos, meu salvador: atordoada, ligo pra polícia, invento uma história pra boi dormir ; a voz mequetrefe do policial , pergunta quem me ajudou a dominar o ladrão, respondo ligeirinho :
 - Um  tal de James Joyce.




6 comentários

Marcelo Pirajá Sguassábia

Que destino mais prosaico para o tijolão mais indecifrável da literatura mundial. Sim, pq para fazer o Vadinho dormir, imagino que a porrada tenha sido com o "Ulisses"... Excelente texto, André.

andre albuquerque

Marcelo, grato pelo olhar ; sim , a traulitada foi com o Ulisses ; talvez a robusta tradução de Houaiss .Abraços.

Jorge Xerxes

Putz... André... Mas que Porra É Essa?

"Não , jamais voltaria aquele mundo parado, feito água de chuva empoçada até virar lama ."

"...beijamo-nos da cabeça aos pés, engatamos uma meia nove , transamos..."

"...pergunto que exu baixou nele..."

Brilhante!!!

Um Grande Abraço, Jorge

andre albuquerque

Jorge, cheguei á conclusão que Joyce é realmente um autor de peso ...grato pelo comentário, meu amigo.

Anônimo

nunca terminei de lê-lo
é como a vida
mas a vida termina
o Ulisses não!

Luiz Alfredo - poeta

andre albuquerque

Luiz Alfredo: grato pelo olhar. Tentei ler Ulisses há uns trinta anos atrás,na tradução de Antonio Houaiss e sucumbi na décima segunda página; na época, achei- o tão árido quanto um verão no Saara.Tentei rele-lo há um ano atrás em outra tradução; sem êxito ;senti- me mais perdido que cego em tiroteio e cachorro em dia de mudança.Considero-o um livro mais comentado e badalado do que lido ; entretanto, curto muito Dublinenses e Retrato de um artista quando jovem.Abraço.