sexta-feira, 27 de julho de 2012

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DO OUTRO LADO DA RUA - Milena Martins

A morte não tem dedos gelados, nem bafo de enxofrre. Não tem capuz, nem ossos aparentes. Não lhe faltam olhos nas órbitas vazias. Nem dois buracos lhe valem de nariz. Eu vi a morte. Era vermelha, brilhava ao sol e corria muito. Era bonita com seus bigodes prateados. Tinha olhos brancos de vidro que se acendiam às vezes. Talvez de dor. Tinha orelhas espelhadas. Patas velozes. A morte cantava como trovoada, eu sei, pude ouvir. E a morte se doía, pude sentir. Ela chegou rápido, inesperada, e me tocou com sua dor e me ergueu no ar e me lançou ao chão. Ofertou seu sofrimento, fechou meus olhos e se diluiu na luz. Não fico com raiva. Ela precisava dividir sua dor comigo, porque já não devia mais aguentar.

E só isso sinto, agora que me deixaram a fome, o frio, o cansaço, o desespero e até o medo. Não fico com raiva, não. É só a morte. Eu já sabia dela desde o dia em que nasci. Dizem que os animais têm sorte, porque não sabem que vão morrer. Não, não, isso é mentira. Quando eu mostro a ameaça dos meus sapatos às formigas, elas fogem, quando eu pego o chinelo as baratas correm, quando os sigo os pombos voam. Algo dentro de cada ser vivo nesta Terra ordena fugir da morte. Mas ela persegue. É de solidão a sua dor, a que ela me transmitiu com o toque do Fado. Estou só agora, neste quadrado branco. Os suicidas estão tomando coragem e brandindo as lâminas. Os doentes terminais estão fazendo a vontade da família e descansando. Ninguém mais fugirá da morte, porque eu não fugi.

Vou morrer com uma cusparada de sangue, vindo direto dos pulmões que se queriam de Tebaldi, Calas, Barbieri, Bartoli, Damrau. Mas acabaram de Jenkins. Vou morrer de costas pro teto, encarando as máscaras de Deus. De que fomos criados, imagem e semelhança. Morrerei caída de ouvidos no chão, à caça de todos os cantos da existência. De frente pro espelho, procurando rugas. Subindo no ônibus. Rolando as escadas. Vou morrer depois da novela, antes de dormir. Vou morrer de tanto não conseguir.


Ao meu encontro, voarão os pombos. Correrão os ratos. As moscas e os vermes. Minha morte trará a chave, abrirá as grades, contorcerá os portões. A dor da morte morrerá comigo. Todos os males findarão comigo. Fechados no caixão de Pandora.

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