Pode haver dentes escuros
naquele sorriso. Pode haver unhas cortantes no afago, veneno no beijo,
mordida na jugular e sangue. Pode haver libertação pela dor. Grito de
medo.
Não será o que parece, será casca. Será cena, será cortina
aberta. Será poço de orquestra ou elevador. Será lâmina-d'água, fria,
bisturi e sangue. Veia partida.
Não tenho você essa noite. Não
tive pela manhã. Tenho os cântaros vermelhos dos olhos e umas roupas no
baú. Tenho saudade e ódio, amor embrutecido e represado, vontade de
toque e do olhar de encanto que sumiu com a tonteira do relógio redondo.
Tenho, enfim, toda a verdade que acabou quando o mundo nasceu.
A
música não nos une. Não nos une a imagem. Nem a luz, nem os móveis, nem
as falas nem o diretor. Não nos une o público que parou pra aplaudir o
aceno.
Você foi embora pintado de verde há muitos anos, de
madrugada. Enquanto eu dormia decorando o corredor. Você foi embora sem
fechar sobre mim a quarta capa. Eu ainda cortando os talos, molhando as
flores, dispondo os vasos sobre a mobília, lustrando o piso. Você
pisando firme do lado de fora, se tacando nos paralelepípedos, pulando a
fogueira. Sapateando um número qualquer muito longe de mim.
Cabeças decepadas de camarão assombrando o jantar,
enxurrada na tempestade. Idílico o terremoto de todos os dias. Empurrão da escada, joelho
ralado. E os créditos subindo.
O barbershop quartet da trilha sonora mente que o amor é esplendoroso. Há figurantes dançando com guarda-chuvas lá fora. Chego no cenário acendendo os refletores, você sentado no sofá. Lombadas dispostas na estante. Verde estufado no pão dos milagres.
quarta-feira, 18 de julho de 2012
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ÚLTIMA NOITE ou A PAREDE QUARTA - Milena Martins
autor(a): Unknown
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