quarta-feira, 18 de julho de 2012

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O ANJO 11 - JANDIRA ZANCHI




11.

      E foi ali que Ariane fez a sua casa, a definitiva, de onde não mais sairia, como disse, muito séria, a Ângelo. Nos meses seguintes imbuiu-se de muito pragmatismo e, sempre acompanhada da filha, inspecionava a construção dos prédios e casas que planejava, fazia a feira na vila que se formara nas proximidades, chamava os homens e mulheres da comunidade para os eventos culturais.
     Ele comportava-se como perfeito dono de si mesmo. Suas telas ocupavam   um imenso galpão erguido sobre uma grama muito verde e eram quase arrogantes em sua vitalidade. Relacionava-se com muitas pessoas, movimentando-se com o gracioso porte dos seus esguios olhos verdes, fecundos e irônicos, que apenas se suavizavam para a mulher e a filha. Começava a temer Ariane. Aos poucos a deixava comandar a casa e a comunidade. Inspecionava-a, observava-a, surpreso e satisfeito.
- O cosmo benigno, Ângelo, só é construído com a interferência de humanos – disse-lhe em uma noite de estrelas muito brancas.
- Benigno....
- Benigno, confiável, diluído do cordão com o caos.
- É possível – e sorriu desconfiado.
- Muitos já o fizeram e tantos continuam a fazê-lo.
- De fato, em algumas pessoas paira uma redoma, um vácuo desligado das pulsões fatais. Mas não existe nenhuma receita. Depende da fortuna, da boa sorte, do acaso de certas conjunções, embora consigamos mover os ares com as cores de nossos pensamentos, com as intenções de nossas pretensas verdades.
- Você sabe que é muito mais mágico do que isso.
- Certo, certo, se não mudamos a matéria em sua constituição podemos, por outro lado, nos transformar em uma realidade, como você diria, benéfica. Veja que estou sendo generoso, eu não disse boazinha, do bem.
- Eu não sou boazinha e faço muito menos do que você, com essa beleza de hedonista requintado, uma vibração de coerência e ajuste. Apenas acredito no cessar da angústia quando finalmente se consegue assumi-la e investigamos o medo e seu instante.
- Pois bem, minha bela, devemos investigar as leis e os modos da energia/matéria, suas nuances, seus transtornos com os estados primevos. Já existe algum consenso sobre isso. Talvez seja especial para você a boa nova de se viver em paz. Muito te incomodam os vazios, os grandes espaços a si deixados, os movimentos e desejos que impomos à natureza. Em minhas telas comemoro cada instante, sua magnificência, mas não posso exigir das belas exaltações da natureza e de seus assobios divinos que se repitam constantemente.
- Ao contrário da maioria das mulheres, não me identifico apenas com a harmonia e a elegância. A objetividade da razão me corrompeu há algum tempo. Por isso me chamo Ariane - sorriu. Mas ainda dói, o conhecimento, para uma mulher, é uma invasão, o útero é rebelde. A natureza é soberana, devemos centrar nossa paz em nossas constituições física e  mental
- e espiritual... é, o inconsciente, aquele indivíduo tenaz e bruto ou, melhor, pré-indivíduo, Anjo ou Fera, é arraigado nas pulsões primitivas.
- É esse, pré-indivíduo, como diz você, que deve ser educado, adaptado, consolado, consultado, e às vezes, libertado.
- É traiçoeiro – e Ângelo falava naquele metálico que às vezes a incomodava. O que teme, Ariane?
- As noites cinzentas, a chuva muito espessa, as trevas impenetráveis, aquelas dotadas de vontade própria, com um gosto de morte e sono como o poder escuso da vontade.
- Sim, quando se aproximam trazem o rastro da morte, mas amiga, ainda assim sente-se alguma ternura, uma acolhida de grande lar, um útero de repouso universal, quase bento.
- Um profundo sono, imerso em frias brumas, porosas, vazadas de éter e suspiros, deitadas na sombra e no espectro das coisas.
- A morte, Ariane, a morte. Esse é o chamado da morte. Aproxima-se assim, densa e sem voracidade. Segura, plena.
- A conhece?
- Sim, mas sei esvaziar-me e, ao contrário de você, não tenho minha vitalidade como um joguete de meu ego, se me tiram a honra, conformo-me. Não sou apegado a essa face que vê, ela apenas está costurada a mim.
- O eterno. Então eu temo o eterno.
- Creio que sim.
- E meu Ângelo, tão fútil e soberbo, é ciente de sua vulnerabilidade.
- Parece-me evidente que sou passageiro.
- Procurarei aprender.
- Não se discipline com tanto rigor. Não se enfie fatos, propostas, objetivos severos e fugazes. Nossa filha possivelmente continuará viva se seu almoço atrasar um pouco...  enfim, métrica de vida orienta, mas também arrebenta. Cada um tem seus méritos.
- A eternidade volta e meia está por aí. Percebo-a. Como se explica esse gosto do seu contacto?
- Não sei dizê-lo. Respeite o que não te compete. O princípio de todos os maus fins é sempre o mesmo.
- Resistência, opressão, angústia, ódio, medo, ambição...  por isso o sopro de meu belo Ângelo sempre pareceu-me imerso em cosmo superior.
- Agora, que me traduziu com tua ímpia necessidade de verificação e análise, beba de meu vinho e me deixe sonhar.

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