11.
E foi ali que Ariane fez a sua casa, a
definitiva, de onde não mais sairia, como disse, muito séria, a Ângelo. Nos
meses seguintes imbuiu-se de muito pragmatismo e, sempre acompanhada da filha,
inspecionava a construção dos prédios e casas que planejava, fazia a feira na
vila que se formara nas proximidades, chamava os homens e mulheres da
comunidade para os eventos culturais.
Ele comportava-se como perfeito dono de si
mesmo. Suas telas ocupavam um imenso
galpão erguido sobre uma grama muito verde e eram quase arrogantes em sua
vitalidade. Relacionava-se com muitas pessoas, movimentando-se com o gracioso
porte dos seus esguios olhos verdes, fecundos e irônicos, que apenas se
suavizavam para a mulher e a filha. Começava a temer Ariane. Aos poucos a
deixava comandar a casa e a comunidade. Inspecionava-a, observava-a, surpreso e
satisfeito.
- O cosmo
benigno, Ângelo, só é construído com a interferência de humanos – disse-lhe em
uma noite de estrelas muito brancas.
-
Benigno....
-
Benigno, confiável, diluído do cordão com o caos.
- É
possível – e sorriu desconfiado.
- Muitos
já o fizeram e tantos continuam a fazê-lo.
- De
fato, em algumas pessoas paira uma redoma, um vácuo desligado das pulsões
fatais. Mas não existe nenhuma receita. Depende da fortuna, da boa sorte, do
acaso de certas conjunções, embora consigamos mover os ares com as cores de
nossos pensamentos, com as intenções de nossas pretensas verdades.
- Você
sabe que é muito mais mágico do que isso.
- Certo,
certo, se não mudamos a matéria em sua constituição podemos, por outro lado,
nos transformar em uma realidade, como você diria, benéfica. Veja que estou
sendo generoso, eu não disse boazinha, do bem.
- Eu não
sou boazinha e faço muito menos do que você, com essa beleza de hedonista
requintado, uma vibração de coerência e ajuste. Apenas acredito no cessar da
angústia quando finalmente se consegue assumi-la e investigamos o medo e seu
instante.
- Pois
bem, minha bela, devemos investigar as leis e os modos da energia/matéria, suas
nuances, seus transtornos com os estados primevos. Já existe algum consenso
sobre isso. Talvez seja especial para você a boa nova de se viver em paz. Muito te incomodam
os vazios, os grandes espaços a si deixados, os movimentos e desejos que
impomos à natureza. Em minhas telas comemoro cada instante, sua magnificência,
mas não posso exigir das belas exaltações da natureza e de seus assobios
divinos que se repitam constantemente.
- Ao contrário
da maioria das mulheres, não me identifico apenas com a harmonia e a elegância.
A objetividade da razão me corrompeu há algum tempo. Por isso me chamo Ariane -
sorriu. Mas ainda dói, o conhecimento, para uma mulher, é uma invasão, o útero
é rebelde. A natureza é soberana, devemos centrar nossa paz em nossas
constituições física e mental
- e espiritual...
é, o inconsciente, aquele indivíduo tenaz e bruto ou, melhor, pré-indivíduo,
Anjo ou Fera, é arraigado nas pulsões primitivas.
- É esse,
pré-indivíduo, como diz você, que deve ser educado, adaptado, consolado,
consultado, e às vezes, libertado.
- É
traiçoeiro – e Ângelo falava naquele metálico que às vezes a incomodava. O que
teme, Ariane?
- As
noites cinzentas, a chuva muito espessa, as trevas impenetráveis, aquelas
dotadas de vontade própria, com um gosto de morte e sono como o poder escuso da
vontade.
- Sim,
quando se aproximam trazem o rastro da morte, mas amiga, ainda assim sente-se
alguma ternura, uma acolhida de grande lar, um útero de repouso universal,
quase bento.
- Um
profundo sono, imerso em frias brumas, porosas, vazadas de éter e suspiros,
deitadas na sombra e no espectro das coisas.
- A
morte, Ariane, a morte. Esse é o chamado da morte. Aproxima-se assim, densa e
sem voracidade. Segura, plena.
- A
conhece?
- Sim,
mas sei esvaziar-me e, ao contrário de você, não tenho minha vitalidade como um
joguete de meu ego, se me tiram a honra, conformo-me. Não sou apegado a essa
face que vê, ela apenas está costurada a mim.
- O
eterno. Então eu temo o eterno.
- Creio
que sim.
- E meu
Ângelo, tão fútil e soberbo, é ciente de sua vulnerabilidade.
-
Parece-me evidente que sou passageiro.
-
Procurarei aprender.
- Não se
discipline com tanto rigor. Não se enfie fatos, propostas, objetivos severos e
fugazes. Nossa filha possivelmente continuará viva se seu almoço atrasar um
pouco... enfim, métrica de vida orienta,
mas também arrebenta. Cada um tem seus méritos.
- A
eternidade volta e meia está por aí. Percebo-a. Como se explica esse gosto do
seu contacto?
- Não sei
dizê-lo. Respeite o que não te compete. O princípio de todos os maus fins é
sempre o mesmo.
-
Resistência, opressão, angústia, ódio, medo, ambição... por isso o sopro de meu belo Ângelo sempre
pareceu-me imerso em cosmo superior.
- Agora,
que me traduziu com tua ímpia necessidade de verificação e análise, beba de meu
vinho e me deixe sonhar.
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