Introdução
Este ensaio intitulado “João Cabral
Melo Neto: A Divisão das Águas” foi produzido no âmbito do seminário de
Literaturas dos Países de Língua Portuguesa (2006), na Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
É composto por duas partes
aparentemente distintas:
A primeira parte foi amplamente
debatida em grupo e aborda a questão do colonialismo cultural e,
essencialmente, do pensamento.
É uma situação que está na génese do
nascimento das literaturas de expressão portuguesa:
Em Angola, entre 1882-1949, na
narrativa, são incontornáveis autores como Alfredo Troni, António de Assis
Júnior, Óscar Ribas e o neo-realismo de Castro Soromenho.
Na poesia, no período entre
1849-1948, são preponderantes os nomes de Maia Ferreira, Tomaz Vieira da Cruz e
Bessa Victor.
Posteriormente, de Agostinho Neto a
Pepetela passando por Luandino Vieira, a literatura angolana foi-se emancipando
gradualmente da cultura europeia. A sua temática é ca
Em Moçambique, podemos partir de
“Msaho” de Noémia de Sousa e chegar a Mia Couto. Nesse caminho vários são os
autores que devem ser consultados: Craveirinha, Knopfli,etc.
Em Cabo Verde, temos o movimento da
“Claridade”, a poesia de Jorge Barbosa e a narrativa de Manuel Lopes. O
neo-realismo cabo-verdiano, Luís Romano e Teixeira de Sousa e a “literatura de
resistência”.
Com grandes diferenças de projecção
e amadurecimento, a literatura das antigas colónias (ou províncias)
conquistaram a sua independência.
Mas nenhuma o fez com o fulgor da
literatura brasileira.
Da literatura do Brasil à literatura
brasileira várias foram as etapas e os autores que as delimitaram:
Da Carta de Achamento ao despontar
do Barroco; do Arcadismo de Santa Rita Durão, Basílio da Gama ao Romantismo.
José de Alencar é um nome
fundamental na afirmação da brasilidade com “O Guarani” e “Iracema”.
Depois temos Machado de Assis (D.
Casmurro), Aluísio Azevedo e muitos mais; os movimentos desde o Naturalismo até
ao Modernismo («Tupi or not tupi»).
O autor que foi escolhido para a
parte principal (2ª) deste ensaio, João Cabral Melo Neto, coloca alguns
“problemas” de periodização pois, como se denota, não pertence à geração
cronológica dos autores seus contemporâneos.
A razão de estudar de forma
aprofundada este autor baseou-se na presunção de “haver qualquer coisa” na sua
poesia que seduz e, no entanto, repele.
Não existe o objectivo de apresentar
qualquer ideia nova, qualquer perspectiva diferente sobre a literatura de Melo
Neto. Pelo contrário, o objectivo foi sempre a aprendizagem da sua obra tendo
por companhia e, de certa forma, guia,
os autores que dedicaram o seu tempo a aprofundarem o conhecimento sobre João
Cabral Melo Neto.
Durante a leitura da sua poesia,
foram esses autores que me levaram “pela mão”, alumiando a riqueza poética que
até aqui era somente vislumbrada.
Cap. I
O
colonialismo do pensamento
Uma relação de dependência necessita
pelo menos de dois elementos. Numa situação colonial existe um nativo
colonizado e um outro no papel de colonizador. Cerca de três quartos do mundo
contemporâneo foi directamente e profundamente afectado pelo imperialismo e
colonialismo. Os processos literários de descolonização envolveram um
desmantelamento drástico dos códigos europeus até aí vigentes e, também, a subversão
pós-colonial e apropriação do discurso europeu. Com a descolonização houve a
necessidade da criação de um discurso novo recuperando, de forma utópica, uma
realidade livre de qualquer influência colonial.
A “pureza” da cultura anterior à
colonização não pode ser recuperada. O hibridismo cultural passa a ser uma
realidade que implica uma relação dialéctica entre a cultura colonizadora,
dominadora e aniquiladora da diferença, e a cultura colonizada, impulsionada
para a criação ou recreação da independência local. O processo de
descolonização é um processo, não um objectivo, que invoca a mencionada
dialéctica entre os sistemas de controlo e subversão e a necessidade de
afirmação, ou seja, criação e recriação da cultura pré-colonial. Diagnosticada
a impossibilidade desse movimento de criação da cultura pré-colonial, o
objectivo do pensamento do pós-colonial concentrou-se na interrogação do
discurso europeu.
O contexto da construção do discurso
literário e cultural influencia a postura de contra-discurso. Esta posição tem
intrínseca uma forte componente social de desidentificação cultural.
Segundo Thomas Bonnici, Fanon propõe
um esquema que contempla três fases durante a ocupação colonial:
«A “fase de assimilação” acontece
quando “o intelectual nativo realmente demonstra haver assimilado a cultura do
poder colonizador. Seus escritos correspondem exactamente, ponto por ponto, aos
temas e às formas literárias do país colonizador. Sua inspiração é europeia e
facilmente pode-se ligar essa obra às tendências definidas na literatura do
país colonizador.
Na segunda fase, chamada “fase
cultural nacionalista”, o intelectual nativo lembra a sua identidade autêntica
e reage contra as tentativas dos colonizadores de obrigá-lo a assimilar a
cultura europeia. Todavia, sua rejeição não é bem-sucedida e suas tentativas de
recuperar e reintroduzir as antigas tradições filosóficas e convenções
estéticas elaborados do ponto de vista do colonizador. (...) Há também a fase
nacional, a fase da luta, ou a “fase revolucionária e nacionalista”. Nesse
estágio, “o intelectual nativo, após ter-se entranhado com o povo e no povo,
começa a inflamar o povo...torna-se o despertador do povo”. Nesse estágio,
realiza-se também o contacto de um grande número de nativos com as realidades
da opressão colonial, e tal fato contribui para uma democratização da
conscientização e da expressão cultural e literária.» (BONNICI:2000,pp 27,28)
O ressurgimento do passado glorioso
nos textos literários é um mecanismo defensivo utilizado pelos intelectuais
nativos para se afastarem da cultura ocidental.
Interpretando as ideias de Fanon
pode-se abordar a reestruturação da cultura nacional passando por várias etapas
necessárias à mesma:
-o escritor ou intelectual tem
necessidade de ver e compreender o povo através de um processo de imersão
cultural; a acção cultural não pode ser separada da luta pela libertação
nacional; a preocupação do escritor ou intelectual nacionalista com o passado deve
estar sempre presente para que se prepare o futuro através da motivação
proporcionada pela esperança.
A libertação política e económica é
uma condição imprescindível para a libertação cultural.
A liberdade criativa e imaginativa
do povo somente atinge o seu expoente máximo quando a cultura nacional se
emancipa, ou seja, quando a totalidade da arte do povo colonizado, a sua
ciência e suas instituições sociais, seu sistema de crenças e ritos que,
frequentemente, são expressos através das canções populares, danças, contos,
pinturas, esculturas, cerimónias, etc. se autonomizam.
A aquisição de uma consciência anti-colonial
e o consequente “despertar” nacional representa o que o colonizador tentara
arduamente dizimar devido ao conhecimento de a cultura ser uma poderosa força
aglutinadora da sociedade colonizada.
O colonizador tem consciência de que
é ele que elabora a história. A referência temática à sua metrópole demonstra
que ele é uma extensão do seu país. Assim sendo, a história que ele escreve não
é a história do país colonizado, pelo contrário, ele continua a escrever a sua
história enriquecida pelos efeitos da colonização.
A reacção pode tardar mas acontece.
Fanon sugere três estratégias:
-
A
criação de laços entre povos que foram separados pela colonialismo em tribos e
culturas autónomas.
-
A
dessacralização e a desmistificação da metrópole, a partir da qual um novo
sistema de poder substituiria a hierarquia colonial.
-
A
valorização da cultura vilipendiada pelo colonizador.
Continuando a seguir a perspectiva
de Fanon, o autor explica o processo de conscientização do intelectual nativo
caracterizado por três fases:
a) O intelectual nativo ganha
consciência do que é. Do passado ele traz a vida cultural do povo.
b) Posteriormente, a fase da luta, onde o
intelectual começa a influenciar a consciência das pessoas.
c) A partir desta altura, nasce a
verdadeira literatura nacional.
No âmbito de uma literatura
pós-colonial acontece, frequentemente, o fenómeno da reescrita e releitura de
textos oriundos de culturas coloniais. Esta releitura/reescrita tem por
objectivo a análise dos efeitos da colonização na produção literária.
A reescrita e releitura sendo
diferentes são, no entanto, ambas características do pós-colonialismo que
fornecem uma visão crítica não somente do corpus literário, mas também da
ideologia que o alimenta.
A reescrita acontece quando um autor
se apropria de um texto, normalmente canónico, onde analisa as personagens e/ou
a sua estrutura criando um novo texto que tem a função de responder , de uma
posição pós-colonial, à ideologia contida no primeiro texto.
A releitura baseia-se numa
estratégia na qual o leitor repara na posição ideológica, política e nas
implicações sociais da colonização assim como na construção , expansão e
estabelecimento do império.
Se pensarmos no imperialismo como
pensamento de colonização, controlo de terras que não são nossas, que estão
distantes, e, obviamente, habitadas por outros, a releitura, então é a
desmistificação e desconstrução de um discurso de superioridade que não
corresponde à realidade; é a destruição de um complexo de inferioridade
estabelecido por uma visão anexada à metrópole, ao pensamento dito evoluído e
civilizado. É a implantação de uma identidade, elemento fundamental de uma
colonização pois funciona como articulador, como ponto de ligação, entre os
discursos e as práticas que nos interpelam e nos colocam no nosso lugar
enquanto sujeitos sociais.
Segundo José Manuel Oliveira Mendes,
«(...) é necessário realçar a necessidade de um sentimento individual de
permanência identitária, permanência esta que é elaborada narrativamente dentro
dos discursos activados em contextos distintos. Importante é também a questão
do poder e da desigualdade no processo identitário. A posição no espaço social,
o capital simbólico de quem diz o quê, condiciona a construção, legitimação,
apresentação e manutenção das identidades» (OLIVEIRA MENDES:2002, pp491).
O mesmo autor afirma ainda: «A
identidade social é um cruzamento de atributos pessoais e estruturais, uma
categorização derivada dos contextos sociais onde decorre a interacção social.
Pode distinguir-se neste processo uma identidade social virtual e uma
identidade social real. A identidade social virtual é constituída pelas
exigências e características que imputamos aos indivíduos. A identidade social
real são os atributos que aqueles realmente possuem e as categorias reais a que
pertencem» (OLIVEIRA MENDES:2002, pp495).
Edward Said afirma que os homens
fazem a sua própria história e referindo-se aos conceito de Oriente e Ocidente
reafirma que é uma ideia detentora de história e tradição de pensamento, de
imagens e construção de um léxico que conferiu uma existência.
A construção do “orientalismo” não é
muito distante da construção da ideia de Europa, noção de um colectivo que nos
adjectiva como europeus, distanciando-nos dos outros que não são europeus.
Pode-se afirmar que o principal factor da cultura europeia é o que contribui
para que esta cultura seja hegemónica dentro e fora da Europa – O conceito de
superioridade sobre todos os povos e culturas não europeias.
Segundo Said, «Não há nada de
misterioso ou natural na autoridade. Forma-se, irradia-se e dissemina-se; é
instrumental, é persuasiva; tem estatuto, estabelece cânones de gosto e valor;
é virtualmente indiscernível de certas ideias que dignifica como sendo
verdadeiras, de tradições, percepções e juízes que efectua, transmite e
reproduz.» (EDWARD SAID:1997, pp22)
Quando para um povo é tempo de
libertação, o ambiente cultural é dominado pela incerteza e indecisão. Para
Fannon, o povo que inicia a libertação e provoca a instabilidade de uma
revolução cultural é portador de uma cultura híbrida.
As pessoas são, nesse momento, o
principio de uma dialéctica reorganizacional entre o tempo antes da colonização
e o colonial.
O processo que acontece da
descolonização ao pós colonial exige uma nova visão metodológica e dialogante
com o mundo global, Impõe-se a atitude a abertura a novos espaços e ao que isso
significa: -Novos conceitos socioculturais; equilíbrio entre tradicionalismo e
a adaptação da tradição e, finalmente, a recusa das instituições e
significações tanto do colonialismo como dos regimes pós-independência.
Confesso que ao pensar neste tema
não consigo deixar de contar a maravilhosa história de Ngugi Wa Thiong´o que
serve de exemplo para a colonização cultural e posterior inflexibilidade da
cultura dominante.
Conta-nos Ngugi Wa Thiong´o que
nascera no seio de uma larga família
composta pelo pai, as suas quatro mulheres e vinte e oito crianças. Pertencia,
segundo ele, a uma extensa família e a uma comunidade vista como um todo.
Falavam Gikuyu quando trabalhavam
nos campos e, também, em casa.
A “oratura” era uma constante.
Muitas eram as tardes onde os contadores de histórias se reuniam à volta da
fogueira e as contavam às crianças. Estas por sua vez recontavam-nas às outras
que trabalhavam no campo colhendo folhas de chá e grãos de café para os patrões
europeus e africanos.
Havia bons e maus contadores. O bom
era aquele que contava vezes sem conta a mesma história, fazendo-a parecer
sempre novidade. Dava “vozes” às personagens, encenava os acontecimentos,
enriquecia a língua com os gestos e a entoação. Assim, aprendia a musicalidade
da sua língua, janela para o mundo.
A língua de aprendizagem, a língua
de comunicação social, e a língua de comunicação laboral era só uma.
No entanto, esta harmonia foi
quebrada quando Ngugi foi para a escola (colonial). A língua de educação não
correspondia à língua da sua cultura. A língua inglesa passou a ser a ser a
língua da educação formal.
Conta-nos o autor que passou por
várias humilhações por ter sido ouvido a conversar em Gikuyu enquanto os
falantes de língua inglesa eram recompensadas através de prémios, prestígio,
aplausos, etc. A língua inglesa era uma medida de inteligência.
O ensino de literatura era, agora,
ditada pelo cânone desprezando a “oratura” das outras línguas.
A língua e a literatura forma
afastando gradualmente as pessoas da cultura de origem.
« (...)
communication between human beings is also the basis and process of envolving
culture. In doing similar kinds of things and action over and over again under
similar circumstances, similar even in their mutability, certain patterns,
moves, rhythms, habits, attitudes, experiences and knowledge emerge. Those
experiences are handed over to the next generation and become the inherited
basis for their further action or nature and on themselves. There is a gradual
accumulation of values which in time become almost self-evident truths
governing their conception of what is right and wrong, good and bad, beautiful
and ugly, courageous and cowardly, generous and mean in their internal and
external relations. Over a time this becomes a way of life distinguishable from
other ways of life. They develop a distinctive culture and history. Culture
embodies those moral, ethical and aesthetic values, the set of spiritual
eyeglasses, though which they come to view themselves and their place in the
universe. Values are the basis of people’s identity, their sense of
particularity as members of human race. All this is carried by language.
Language as culture is the collective memory bank of people’s experience in
history. » (NGUGY
WA THIONG´O: pp. 289)
A cultura é indistinguível da
língua, espelho e veículo da mesma de geração em geração. A língua suporta a
cultura e esta é composta por um corpus de valores pelos quais nos interrogamos
e identificamos com a realidade envolvente.
(Continua)
(Continua)
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