Seria então, de agora em diante conceitual. Seria personagem de si
mesmo, para poder atravessar e ser atravessado. Para poder traçar em escrita a
cartografia de sua experiência. Não que a carne e o corpo real já não
estivessem afogados, perdidos nela. Nessa cartografia. Mas a necessidade da
escrita exigia esse deslocamento. É preciso um corpo que se desmanche e se
organize de acordo com a força e fraqueza de um texto que se constrói, também,
na força e fraqueza desse corpo. Corpo e texto, textual e corporal.
Escrever é além de relatar, é além de representar. Escrever é criar uma
outra possibilidade, escrever é provocar a existência de um “impossível”.
Criar. E para escrever é necessário força. É necessário tremer. E temer o
próprio texto, pois se está indo para além de qualquer representação. Como a
menina que atravessa espelhos, como o marinheiro que se enrosca com o monstro
marinho, como o escriturário que recusa o mundo, como o dramaturgo que dança
com os Taraumaras suas dores e loucuras todas.
"Eu não sou mais eu, mas uma aptidão do pensamento para se ver e se
desenvolver através de um plano que me atravessa em vários lugares. O personagem
conceitual nada tem a ver com uma personificação abstrata, um símbolo ou uma
alegoria, pois ele vive, ele insiste."[1]
É impossível para mim dar início ao que pretendo sem mencionar a escrita
como força propulsora, elemento que me amarra e ao mesmo tempo me arremessa.
Potência que me organiza e dá sentido, como também força que me desarticula e
me eviscera. Desorganizando corpo e mente. Circunstância singular na qual me
forço a pensar.
Inicio abordando a escrita, pois é dela que trata o meu projeto. E como
conceito, personagem, neste momento também sou escrita. E preciso disto para
lidar por dentro, através de uma micro-política, dos discursos que configuram o
ato de escrever e suas formas de produzir subjetividade.
Necessito estar dentro para falar sobre. Não mais como um cientista que observa o
objeto pela ótica do microscópio. A distância do sujeito e do objeto é
unicamente a da dobra Deleuziana. Fora e dentro. Uma coisa só. É assim que tem
que ser. Meu texto é a própria experiência que se constrói através da palavra
que procura acompanhar meu passo incerto.
Minha cartografia se inicia em um cruzamento. Perigoso cruzamento entre
um espaço e outro. Eu sou o cruzamento, o ponto de contato e mutação entre
esses dois espaços. Que não estão fora. Estão em mim. Sou eu.
Falo do espaço que se produz ao redor e no interior da escola pública, e
de todas as forças que movem e configuram esse mesmo espaço. Falo de gente que circula
dentro e ao redor dessa estrutura, e que é configurado e delineado por ela.
Professores que assim como eu, são produzidos dentro de um discurso que mistura
frustração e cansaço, desânimo e esperança, e que se submetem aos mandos e
desmandos de uma estrutura molar que lhes cobra produção e competência todos os
dias. Neste primeiro momento, nesta parte do meu corpo, sou uma "realidade"
que balança dentro dos ônibus e treme diante da fragilidade estrutural de uma
educação pública. E isso não é choro, para falar de uma experiência, devo expor
sem "nojo" minhas entranhas, pois delas sou constituído. Entranhas
verbais e discursivas. Minhas tripas recheadas de frustração e do eco de
palavras vazias. Mas isso é uma parte de mim. A outra percorre as linhas que
são escritas nos livros. A outra parte de mim desliza nos corredores da
academia, articulando ideias e discursos, produzindo artigos e monografias,
propondo projetos. Escrevendo contos, poemas, delírios em blogs e redes sociais
de cunho literário. Texto.
Essa parte de mim é a parte mais viva, pois vibra nos encontros que faz
com autores e teorias. Este corpo em que me constituo não se resume a dois
espaços delimitados por uma fronteira, um está imbricado no outro, e juntos são
capazes de produzir outros tantos espaços inusitados de mim mesmo.
Sou literário porque não sou carne. Essa carne de rebanho. Já agora não
sou. Enquanto texto sou outra coisa, se não a "coisa" que desejo, os
espaços de proximidade dela. Espaços que tensiono como posso, como consigo. Por
dentro, da única forma em que sou mais forte que o próprio discurso que me
captura. E se resisto é porque sou texto, louco e bêbado como Dionízio,
delirante. E isso de maneira alguma é fuga. De forma alguma é covardia. É guerrilha.
É indignação. Habitar Dionízio é estar em guerra. É produzir guerrilhas. Cambalear
pelas linhas do que escrevo, copo de vinho na mão. É produzir minha saúde. Só
consigo produzir sentido embriagado, afogado. É imprescindível para mim.
Necessário. De outra forma sou eco. Retrato. Representação. Habitar Apolo é
estar doente. É escrever diante do muro. É ser o muro.
Texto publicado no blog literário DEVIR:
1 Comentário
Lindoooooooooo!!!!!!!
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