Atravessar a rua era
perigoso. Sempre havia um certo perigo em atravessar qualquer coisa. E estava
temeroso. Sempre estava. Existia um medo. Um medo que se alastrava por dentro,
tomando espaço e possuindo todos os órgão do seu corpo. Os carros eram terríveis,
coloridos e barulhentos. Poluíam tudo. E as ruas eram cores em fluxo e os
cabelos tremiam com o vento e a poeira também sujava e as pessoas corriam,
arriscando a vida. Por entre todos os carros e cores. Nos jornais algumas
morriam. Não tinha visto ao vivo. Tinha curiosidade. Como seria? Mas tinha
medo. O espaço em que o corpo é arremessado,
a dor e o pânico da caída, do tombo. O rosto de pânico do motorista. O sangue e
a pele e o osso do corpo e a lata do carro. E a borracha das rodas e as freadas
e os choques dos outros carros e os gritos e a dor de todos...
Mas tinha que atravessar.
Todos tinham. A vida era assim. Travessia?
Ao lado uma mulher o
observava. Gostosa. Bonita. Saia curta sandália bonita. Sorriso caindo do rosto
em olho brilhante e vivo de verde luz. Pensou que podia se apaixonar. Ela atravessou,
corridinha. Corpo singular entre os carros que buzinavam. Do outro lado. Já estava.
Longe dele e de seu amor, sua paixão e sexo. O rio de carros interrompendo o
fluxo de sua vida. Estava estático. As pernas não obedeciam.
Podia correr, sabia que
podia. O cérebro lhe indicava isso. Mas as pernas estavam em greve. Mortas. Assustadas
com a força do caos que fervilhava em sua frente. Energia pura.
Um cachorro cheirou
suas pernas. Preto e feio. Rabo balançando, farejando qualquer coisa. Iria
atravessar também? Não se animou. Voltou por onde viera. Farejando, balançando
o rabo.
Havia um sol. Forte e
amarelo e quente. E os carros todos. Motores e latas e ferros. E borracha e
gente sentada. Gente sentada quase voando. Todos sentados correndo pela rua. Parecia
meio ridículo. Mas não importava. Iria atravessar.
Já estava ficando apavorado. A casa distante e aquele medo.
E então sorriu. Assim. Um
sorriso que surge de pensamento que não estava e chega. Chega de súbito,
invadindo, arrebentando todo os outros.
E lançou-se na rua. Entre
os carros e o fluxo de energia e barulho e força. E o corpo desmanchou-se em
fragmentos. Pó.
No hospital os filhos
se abraçaram. Havia uma tristeza e um alívio. "Descansou." Dissera um
médico.
Então arregalou os
olhos e gritou.
O médico caiu sentado. Estava
vivo. Novamente vivo.
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