A Terra transformou-se atualmente no grande e obscuro objeto do
cuidado humano. Damo-nos conta de que podemos ser destruidos. Não por
alguma meteoro rasante, nem por algum cataclismo natural de proporções
fantásticas. Mas por causa da irresponsável atividade humana. Segundo o
prêmio Nobel de Química de 1995, o holandês Paul J. Crutzen, criamos uma
nova era geológica, o antropoceno.Por ela o ser humano comparece como a
grande ameaça destruidora da biosfera.
Segundo Carl Sagan
inventamos o princípio de autodestruição. pelas armas de destruição em
massa. Agora nos demos conta de que a guerra total conduzida contra
Gaia, pode fazer com que ela não nos queira mais sobre a sua superfície.
Seríamos expulsos como expulsamos uma célula cancerígena. Dado o
estresse a que temos submetido todos os ecossistemas, a Terra vai
irrefreavelmente subir de temperatura que oscilará entre 1,8 e 5 graus
Celsius. Com a entrada do metano na atmosfera que é 23 vezes mais
agressivo que o dióxido de carbono, pode ocorrer nos próximos decênios,
uma “mudança abrupta do clima "(Abrupt Climate Change) da ordem de 4-5
graus Celsius, como o vem advertindo o Comité da Academia Nacional de
Ciências dos EUA. Os efeitos seriam devastadores. Grande parte da
biodiversidade poderá desparecer bem como e milhões e milhões de
pessoas que não teriam como encontrar refúgios salvadores.
Em
razão destes alarmes, despertamos de um ancestral torpor. Somos
responsáveis pela vida ou pela morte de nosso planeta vivo, pelo “futuro
que queremos” como o formulou a Rio+20, futuro nosso e de nossa Casa
Comum.
Cabe perguntar :poderia o ser humano desaparecer por causa de seu poder destrutivo e de sua falta de sabedoria?
Possibilidade real do fim da espécie homo
Nomes
notáveis das ciências não excluem esta eventualidade. Stephen Hawking
em seu livro O universo numa casca de noz (Mandarim, São Paulo 2001)
reconhece que num futuro não muito distante a população mundial ficará
ombro a ombro e o consumo de eletricidade deixará a Terra incandescente.
Ela poderá se destruir a si mesma (pág. 159).
O Prêmio Nobel de
Química Christian de Duve, em seu conhecido Poeira Vital (Campus, Rio
de Janeiro, 1997) atesta que “a evolução biológica marcha em ritmo
acelerado para uma grande instabilidade; de certa forma nosso tempo
lembra uma daquelas importantes rupturas na evolução, assinaladas por
extinções em massa”(pág. 355). Antigamenente, eram os meteoros rasantes
que ameaçavam a Terra; hoje o meteoro rasante se chama ser humano.
Théodore
Monod, talvez o último grande naturalista, deixou como testamento um
texto de reflexão com este título: E se a aventura humana vier a falhar?
(Et si l’aventure humaine devait échouer?, Grasset, Paris, 2000).
Assevera: “Somos capazes de uma conduta insensata e demente; pode-se a
partir de agora temer tudo, tudo mesmo, inclusive a aniquilação da raça
humana” (pág. 246). E acrescenta: “Seria o justo preço de nossas
loucuras e de nossas crueldades” (pág. 248)
Se olharmos a crise social mundial e o crescente alarme ecológico, esse cenário de horror não é impensável.
Edward
Wilson atesta em seu alarmante livro O futuro da vida (Campus, Rio de
Janeiro, 2002): “O homem até hoje tem desempenhado o papel de assassino
planetário…a ética da conservação, na forma de tabu, totemismo ou
ciência, quase sempre chegou tarde demais; talvez ainda haja tempo para
agir” (pág.121). E em seu último livro, A Criação: Como salvar a vida na
Terra (Companhia das Letras, SP, 2008) sugere uma sagrada aliança entre
religião e ciência como forma de evitar a aniquilação da vida.
Anotemos
a opinião de dois grandes historiadores: Arnold Toynbe, em sua
auto-biografia — “Vivi para ver o fim da história humana tornar-se uma
possibilidade real, que pode ser traduzida em fato por um ato não de
Deus mas do homem” (Experiências, Vozes, Petrópolis, 1970, pág. 422), e
Eric J. Hobsbawn, em sua conhecida Era dos extremos, concluindo seu
livro: “Não sabemos para onde estamos indo. Contudo, uma coisa é certa.
Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo
prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o
terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou
seja, a alternativa para a mudança da sociedade é a escuridão”
(Objetiva, 1944, pág. 562).
Nem preciso citar as previsões
sombrias de James Lovelock (A vingança de Gaia, Editora Intrínseca, RJ,
2006; Gaia: alerta final, RJ, Intrínseca 2009, cf. revista Veja de 25 de
outubro de 2006) ou do astrofísico Martin Rees (Hora final, Companhia
das Letras, SP, 2005) que preveem o fim da espécie antes do fim do
século. Lovelock é contundente: “Até o fim do século, 80% da população
humana desaparecerão. Os 20% restantes vão viver no Ártico e em alguns
poucos oásis em outros continentes, onde as temperaturas forem mais
baixas e houver um pouco de chuva… Quase todo o território brasileiro
será demasiadamente quente e seco para ser habitado”(Veja, op. cit. pág.
20).
Lógico, precisamos ter paciência para com o ser humano. Ele
não está pronto ainda. Tem muito a aprender. Em relação ao tempo
cósmico, possui menos de um minuto de existência. Mas com ele a
evolução deu um salto, de inconsciente se fez consciente. E com a
consciência pode decidir que destino quer para si mesmo. Nesta
perspectiva, a situação atual representa antes um desafio que um
desastre possível, a travessia para um patamar mais alto e não
fatalmente um mergulho na autodestruição. Estaríamos, portanto, num
cenário de crise e não de tragédia.
Mas haverá tempo para tal
aprendizado? Tudo parece indicar que o tempo do relógio corre contra
nós. Possivelmente, estamos chegando tarde demais, pois teríamos passado
o ponto de não retorno. Mas, como a evolução não é linear e conhece
frequentes rupturas e saltos para cima como fruto de uma complexidade
maior e como existe o caráter indeterminado e flutuante de todas as
energias e de toda a matéria consoante a física quântica de W.
Heisenberg e de N. Bohr, nada impede que ocorra a emergência de um outro
patamar de consciência e de vida humana que salvaguarde a biosfera e o
planeta Terra.
Consequências do desaparecimento da espécie humana
Na
hipótese de um eventual desaparecimento de nossa espécie, que
consequências derivariam para nós e para o processo da evolução?
Antes
de qualquer consideração, seria uma catástrofe biológica de
incomensurável magnitude. Ter-se-ia perdido o trabalho de pelomenos 3,8
bilhões de anos, data provável do surgimento da vida, e dos últimos 5-7
milhões de anos, data do aparecimento da espécie homo e dos últimos 100
mil anos, da irrupção do homo sapiens, trabalho esse feito pelo inteiro
universo com suas energias, informações e diferentes formas de
matéria.
O ser humano, na medida em que podemos constatar,
observando o universo, é o ser da natureza mais complexo já conhecido.
Complexo em seu corpo com 30 bilhões de células, continuamente renovadas
pelo sistema genético, complexo em seu cérebro de 100 bilhões de
neurônios em contínua sinapse, complexo em sua interioridade, em sua
psiqué e em sua consciência, carregada de informações recolhidas desde o
irromper do cosmos com o big bang e enriquecida com emoções, sonhos,
arquétipos, símbolos oriundos das interações da consciência consigo
mesma e com o ambiente à sua volta, complexo em seu espírito, capaz de
captar o Todo e sentir-se parte dele e de identificar aquele Elo que une
e re-une, liga e re-liga todas as coisas fazendo que não sejam caóticas
mas ordenadas. Esse Elo confere sentido e significado à existência
neste mundo e nos faz suscitar sentimentos de profunda veneração e
respeito face à grandeur do cosmos.
Até hoje não foram
identificadas cientificamente e de forma irrefutável outras
inteligências no universo. Por enquanto somos como especie homo uma
singularidade sem comparação no cosmos. Somos um habitante de uma
galáxia média, a Via Láctea, uma entre outros 200 bilhões delas,
dependemos de uma estrela, o Sol, de quinta grandeza, uma entre outros
trezentos bilhões, situada a 27 mil anos-luz do centro de nossa galáxia,
no braço interior da espiral de Orion, moramos no terceiro planeta do
sistema solar, a Terra, e agora estamos aqui frente ao computador,
refletindo sobre as consequências de nosso provável fim.
O
universo, a história da vida e a história da vida humana perderiam algo
inestimável. Toda a criatividade produzida por esse ser, criado criador,
que fez coisas que a evolução por ela mesma jamais faria, como nos
pintar uma tela de Portinari ou nos fazer ouvir uma canção de Chico
Buarque ou construir um canal de televisão, as construções da cultura
seja daquela material, simbólica e espiritual, tudo isso teria
desparecido para sempre. Para sempre ter-se-iam extinguido as grandes
produções poéticas, literárias, científicas, sociais, políticas éticas e
religiosas da humanidade.
Para sempre ter-se-iam apagado as
referências de figuras paradigmáticas de seres humanos entregues ao
amor, ao cuidado, à compaixão e à proteção da vida em todas as suas
formas como Buda, Chuang-tzu, Moisés, Jesus, Maria de Nazaré, Maomé,
Francisco de Assis, Gandhi, entre tantos e tantas outras. Para sempre
teriam sumido também as antifiguras que macularam o humano e violaram a
dignidade da vida em incontáveis guerras e extermínios cujos nomes
sequer queremos mencionar.
Para sempre ter-se-ia apagado a
decifração da Fonte Originária de todo Ser que permeia toda a realidade e
que irrompe em nossa consciência permitindo-nos profunda comunhão com
ela, fazendo-nos sentir como um projeto infinito que somente descansa
quando mergulhar nesta Fonte feita de ternura e de amor.
Quem nos substituiria na evolução da vida?
Na
hipótese de que o ser humano venha a desparecer como espécie, mesmo
assim o princípio de inteligibilidade e de amorização ficaria
preservado. Ele está primeiro no universo e depois em nós, seres
humanos. Esse princípio é tão ancestral quanto o universo. Quando, nos
primeiríssimos momentos após a grande explosão, quando se formou o campo
Higgs e as primeiras partículas elementares, como os quarks e os
prótons, então tais partículas começaram a interagir. Fizeram surgir
redes de relações e unidades de informação e ordens complexas. Aí se
manifestava aquilo que depois se chamará de espírito, aquela capacidade
de criar unidades e quadros de ordem e de sentido. Ao desaparecer de
dentro da espécie humana, o espírito emergiria, um dia, quem sabe, em
milhões de anos de evolução em algum ser mais complexo.
Théodore
Monod, falecido no ano 2000, sugere até um sucessor nosso, já presente
na evolução atual: os cefalópodes, isto é, os moluscos como os polvos e
as lulas. Alguns deles possuem um aperfeiçoamento anatômico notável, sua
cabeça é dotada de cápsula cartiginosa, funcionando como crânio, e
possuem olhos como os vertebrados. Detêm ainda um psiquismo altamente
desenvolvido, até com dupla memória, quando nós possuímos apenas uma
(op. cit., págs. 247-248).
Evidentemente, eles não sairiam amanhã
do mar e entrariam continente adentro ocupando nossas instituições.
Precisariam de milhões de anos de evolução. Mas já possuem a base
biológica para um salto rumo à consciência e para suportar o espírito.
De
todas as formas, urge escolher: ou o ser humano e seu futuro, ou os
polvos e as lulas vindouras. Somos otimistas: vamos criar juizo e
aprender a ser sábios e prolongar o projeto humano.
Mas importa
já agora mostrar amor à vida em sua majestática diversidade, ter
com-paixão com todos os que sofrem, realizar rapidamente a justiça
social necessária e amar a Grande Mãe, a Terra. Incentivam-nos as
Escrituras judaico-cristãs: “Escolha a vida e viverá”. Andemos depressa,
pois não temos muito tempo a perder.
Como vê a teologia cristã o eventual fim da espécie?
Antes,
situemos a pergunta em sua tradição histórica, pois não é a primeira
vez que os seres humanos se colocam seriamente esta questão. Sempre que
uma cultura entra em crise, como a nossa, faz suscitar mitos de fim do
mundo e de destruição da espécie. Usa-se, então, recurso literário
conhecido: relatos patéticos de visões e de intervenções de anjos ou de
seres extraterrestres que se comunicam conosco para anunciar mudanças
iminentes e preparar a humanidade. No Novo Testamento esse gênero ganhou
corpo no livro do Apocalipse e em alguns trechos dos Evangelhos que
colocam na boca de Jesus predições de fim do mundo.
Hoje
prolifera vasta literatura esotérica, que usa códigos diferentes como
passagem a outro tipo de vibração e a comunicação com extraterrestres.
Mas a mensagem é idêntica: a viragem é iminente e há que estar
preparado.
Importante é procurar entender esse tipo de
linguagem. É linguagem de tempos de crise, e não uma reportagem
antecipada do que vai ocorrer.
Mas há uma diferença entre os
antigos e nós hoje. Para os antigos, o fim do mundo estava no seu
imaginário e não no processo realmente existente. Para nós, está no
processo real, pois criamos de fato o princípio de autodestruição.
E
se desaparecermos, como se há de interpretar? Chegou a nossa vez no
processo de evolução, já que há sempre espécies, desparecendo
naturalamente. Que diz a reflexão teológica cristã?
Brevemente
diria: se o ser humano frustar sua aventura planetária, significa, sem
dúvida, uma tragédia inominável. Mas não seria uma tragédia absoluta.
Essa, ele já a perpetrou um dia. Quando o Filho de Deus assumiu a nossa
humanidade, nós o assassinamos, pregando-o na cruz. Só então se
formalizou o pecado original, que é um processo histórico de negação da
vida. Maior perversidade que matar a criatura (a espécie humana) é matar
o Criador, que se fez humano.
Mesmo que a espécie humana se mate
a si mesma, ela não consegue matar tudo dela. Só mata o que é. Não pode
matar aquilo que ainda não é: as virtualidades escondidas nela e que
querem se realizar. E aqui entra a morte em sua função libertadora.
Mais que separar corpo do espírito, ela separa o tempo da eternidade. Ao
morrer, o ser humano deixa o tempo e penetra na eternidade. Caindo as
barreiras espácio-temporais, as virtualidades agrilhoadas podem
desabrochar em sua plenitude. A morte seria uma invenção da vida para
que esta pudesse desabrochar plenamente. Só então acabaremos de nascer
como seres humanos plenos. Portanto, mesmo com a liquidação criminosa da
espécie, o triunfo da espécie não é frustrado. A espécie sai
tragicamente do tempo pela morte, morte esta que lhe concede penetrar,
plenamente realizado, na eternidade.
Alimentamos otimismo. Assim
como o ser humano domesticou outros meios de destruição como o primeiro
deles, o fogo (que originou os mitos de fim do mundo), assim agora
domesticará os meios que podem destruí-lo. Aqui caberia uma análise das
possibilidades dadas pela nanotecnologia (que trabalha com átomos, genes
e moléculas) que pode, eventualmente, oferecer meios técnicos para
diminuir o aquecimento global e purificar a biosfera dos gases de efeito
estufa.
De todas as formas, devemos pensar esta questões em
termos da física quântica e da nova cosmologia. A evolução não é linear.
Ela acumula energia e dá saltos. Assim tambem nos sugere a visão
elaborada por Niels Bohr e por Werner Heisenberg: virtualidades
escondidas,vindas do Vácuo quântico, daquele Oceano indecifrável de
Energia que subjaz e pervade o universo, podem irromper e modificar a
seta da evolução.
Recuso-me a pensar que o nosso destino, depois
de milhões de anos de evolução, termine assim miseravelmente nas
próximas gerações. Haverá uma salto, quem sabe, na direção daquilo que
já em 1933 Pierre Teilhard de Chardin anunciava: a irrupção da noosfera,
vale dizer, aquele estado de consciência e de relação com a natureza e
com os seres humanos entre si, que inaugurará uma nova convergência de
mentes e corações. Dar-se-ia assim um novo patamar da evolução humana e
da história da Terra. O filósofo Ernst Bloch diria: o verdadeiro gênesis
não está no começo mas no fim.
Nesta perspectiva o cenário atual
não seria detragédia mas de crise. A crise acrisola, purifica e
amadurece. Ela anuncia um novo começo, uma dor de um parto promissor e
não as penas de um abortamento da aventura humana. Ainda vamos
irradiar.
O que importa dizer é que não acaba o mundo, mas pode
acabar este tipo de mundo insensato que ama a guerra e devasta a
natureza. Vamos inaugurar um mundo humano que ama a vida, desacraliza a
violência, tem cuidado e piedade para com todos os seres, realiza a
justiça verdadeira, enfim, nos permite estarmos no monte das
bem-aventuranças e não no vale de lágrimas. Ou simplesmente: teremos
todos aprendido a tratar humanamente a todos os seres humanos e com
cuidado, respeito e compaixão a todos os demais seres. Tudo que
existe, merece existir. Tudo o que vive merece viver. Especialmente nós,
seres humanos.
*Leonardo Boff é teólogo, filósofo, escritor, membro da Comissão Inaternacional da Carta da Terra. - lboff@leonardoboff.com
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