“Minha anti-Lolita foi uma comoção
de saias,que iniciou (sem querer) na vida dos homens, quem tinha o medo de ser
homem sem nenhuma causa de ter o medo de ser homem ; deu-me um convívio de
formação (também sem querer) belo, árido, horrível,espinhoso,terno,maravilhoso.
Interiormente andrajoso e vagabundo, perdido no mato sem cachorro, em terras
sem mato e sem cachorro, quantas vezes fiquei ?
Minha anti-Lolita de hoje,apenas
belo monumento sob a cinza dos anos,mesmo enquanto apenas lembrança, excita e
intumesce uma vida que apenas quer ser vivida na paz e recolhimento de quem
muito já sofreu e já se deu ao mundo e quase nada o mundo lhe deu, em tépida
indiferença ; vida morna de sentimentos frios, onde esbarrei na flor da minha
obsessão , na alegoria já desbotada dos vinte e seis anos de minha vida,que
seria obsessão aos cinqüenta , aos setenta e cinco, (sim,com certeza será) porque
fui tardiamente atirado ao aprendizado de ser homem, com todos os seus afetos
de medo, alegria,tristeza ou de simplesmente ficar á espreita de mim mesmo.
Enquanto comoção , forte demais
para mim e para si mesma, passou , devastadora como chegou.Hoje, apenas grata
recordação num recesso da mente, onde guardo os rebotalhos da existência,tal
uma roupa velha,sapatos de destino incerto,bonecos mutilados, livros sediciosos
á minha impaciência,recordações de vocação ao pó que não juntam poeira, porque
constantemente manuseadas , reviradas pelo pensamento crítico que um dia não o
foi ; por isso mesmo, feito passageiro da stultifera navis , embarcado sem
bilhete de retorno , sentindo-se desgraçado e maravilhoso , vivo como nunca
dantes .
O telefonema de um vizinho ,
avisou-me de sua morte ,numa tarde de frio aziago e sonolento,enquanto eu via
na TV,National Kid exterminar os Incas Venusianos. Falou que durante três dias
ninguém reclamara o corpo ; do caixão e flores comprados numa cota entre
vizinhos . Ah , sim : morrera de infarto, o segundo. Agradeci , liguei para uma
sua irmã em Mato Grosso
da qual ainda conservava o endereço, (ato falho e falido , penso hoje) ,que
enviou dinheiro para o traslado do corpo .
No aeroporto, ao lado da pista ,penso na vida
e na sua morte: uma tapa na cara a lembrar-me da própria finitude .Da carcaça
podre do verbo, ergue-se a árida certeza : o ataúde aguardando transporte,
ladeando o avião em transito para um lugar seco e esmaecido , tal o resto de
minha vida.Ventos talvez conhecidos de outras paragens, abraçavam-se e rolavam
pela pista como filhotes de cães , ondulando a grama ao redor . MP,1966. “
NOTA: Texto por mim encontrado ,
entre as páginas de um diário do professor Manasses Paletakis , após minha
mudança para um apartamento onde residira durante sua longa vida de solidão
plácida e erudita , até suicidar-se aos noventa anos, atirando-se no vão da
escada interna do prédio, estranhamente com um charuto havana aceso entre os
dedos e um exemplar de Tabela Periódica, de Primo Levi, num dos bolsos internos
do seu casaco, junto a um bilhete de suicídio ; informação prestada á polícia,
pela senhora R.S, vizinha de pavimento e suposta amante do falecido , conforme
insinuação do síndico do prédio, em depoimento também prestado na Delegacia do
Bairro de C.... O bilhete de suicídio, mesmo parte integrante de um processo,
foi exaustivamente estudado por estudantes de Psicologia , Psiquiatria e
Letras, como obra – prima de autoconsciência, concisão e estilo , aliás como
todo bilhete de suicídio , já dizia o grande escritor T.D, notório desafeto do
professor .
6 comentários
Meu Caro André,
Genial o Texto do Prof. Manasses Paletakis! :-))
"Hoje, apenas grata recordação num recesso da mente, onde guardo os rebotalhos da existência,tal uma roupa velha,sapatos de destino incerto,bonecos mutilados, livros sediciosos á minha impaciência,recordações de vocação ao pó que não juntam poeira, porque constantemente manuseadas , reviradas pelo pensamento crítico que um dia não o foi ; por isso mesmo, feito passageiro da stultifera navis , embarcado sem bilhete de retorno , sentindo-se desgraçado e maravilhoso , vivo como nunca dantes ."
E Sorte a Sua em tê-lo encontrado - inversamente proporcional ao triste fim do Professor.
Um Forte Abraços! Jorge
ps: sempre é bom tomar cuidado com o vão central das escadas em formato espiral...
Jorge: grato pelo olhar;mas um cara que suicida-se fumando charuto deve ser complicado mesmo...rs,rs,rs.Forte abraço.
O nome Manassés significa esquecimento. Acho que até nisso você pensou, André, ao conceber essa concisa e intrincada narrativa. Fantástica lavra, meu amigo!
Marcelo: grato pelo olhar e comentário;a memória pode ser fuga e enfrentamento,simultaneamente ; a demência ,ás vezes,tenta associar-se ao que interpreta como poesia e os resultados são imprevisíveis ,muitas veze.Forte abraço.
As memórias muitas vezes se eternizam e nos tornam fluxos mais humanos. Estes achados que nos fazem salivar as grandes e intensas lembranças.
Excelente texto.
Ainda bem que caiu em mãos de alguém que o fez reviver... Grata pela sua passagem pelas minhas páginas.
São muitos os espaço e o tempo de visitá-los, às vezes são quase que inexistentes, mas aqueles que me visitam faço questão de conhecer e retribuir a gentileza e atenção, afinal, todo aquele que escreve escreve para alguém...
Grande abraço!!!
Malu:grato pelo olhar e comentário.Forte abraço.
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