sábado, 1 de setembro de 2012

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Enquanto apenas lembrança





“Minha anti-Lolita foi uma comoção de saias,que iniciou (sem querer) na vida dos homens, quem tinha o medo de ser homem sem nenhuma causa de ter o medo de ser homem ; deu-me um convívio de formação (também sem querer) belo, árido, horrível,espinhoso,terno,maravilhoso. Interiormente andrajoso e vagabundo, perdido no mato sem cachorro, em terras sem mato e sem cachorro, quantas vezes fiquei ?
Minha anti-Lolita de hoje,apenas belo monumento sob a cinza dos anos,mesmo enquanto apenas lembrança, excita e intumesce uma vida que apenas quer ser vivida na paz e recolhimento de quem muito já sofreu e já se deu ao mundo e quase nada o mundo lhe deu, em tépida indiferença ; vida morna de sentimentos frios, onde esbarrei na flor da minha obsessão , na alegoria já desbotada dos vinte e seis anos de minha vida,que seria obsessão aos cinqüenta , aos setenta e cinco, (sim,com certeza será) porque fui tardiamente atirado ao aprendizado de ser homem, com todos os seus afetos de medo, alegria,tristeza ou de simplesmente ficar á espreita de mim mesmo.
Enquanto comoção , forte demais para mim e para si mesma, passou , devastadora como chegou.Hoje, apenas grata recordação num recesso da mente, onde guardo os rebotalhos da existência,tal uma roupa velha,sapatos de destino incerto,bonecos mutilados, livros sediciosos á minha impaciência,recordações de vocação ao pó que não juntam poeira, porque constantemente manuseadas , reviradas pelo pensamento crítico que um dia não o foi ; por isso mesmo, feito passageiro da stultifera navis , embarcado sem bilhete de retorno , sentindo-se desgraçado e maravilhoso , vivo como nunca dantes .
O telefonema de um vizinho , avisou-me de sua morte ,numa tarde de frio aziago e sonolento,enquanto eu via na TV,National Kid exterminar os Incas Venusianos. Falou que durante três dias ninguém reclamara o corpo ; do caixão e flores comprados numa cota entre vizinhos . Ah , sim : morrera de infarto, o segundo. Agradeci , liguei para uma sua irmã em Mato Grosso da qual ainda conservava o endereço, (ato falho e falido , penso hoje) ,que enviou dinheiro para o traslado do corpo .
 No aeroporto, ao lado da pista ,penso na vida e na sua morte: uma tapa na cara a lembrar-me da própria finitude .Da carcaça podre do verbo, ergue-se a árida certeza : o ataúde aguardando transporte, ladeando o avião em transito para um lugar seco e esmaecido , tal o resto de minha vida.Ventos talvez conhecidos de outras paragens, abraçavam-se e rolavam pela pista como filhotes de cães , ondulando a grama ao redor . MP,1966. “

NOTA: Texto por mim encontrado , entre as páginas de um diário do professor Manasses Paletakis , após minha mudança para um apartamento onde residira durante sua longa vida de solidão plácida e erudita , até suicidar-se aos noventa anos, atirando-se no vão da escada interna do prédio, estranhamente com um charuto havana aceso entre os dedos e um exemplar de Tabela Periódica, de Primo Levi, num dos bolsos internos do seu casaco, junto a um bilhete de suicídio ; informação prestada á polícia, pela senhora R.S, vizinha de pavimento e suposta amante do falecido , conforme insinuação do síndico do prédio, em depoimento também prestado na Delegacia do Bairro de C.... O bilhete de suicídio, mesmo parte integrante de um processo, foi exaustivamente estudado por estudantes de Psicologia , Psiquiatria e Letras, como obra – prima de autoconsciência, concisão e estilo , aliás como todo bilhete de suicídio , já dizia o grande escritor T.D, notório desafeto do professor .










6 comentários

Jorge Xerxes

Meu Caro André,

Genial o Texto do Prof. Manasses Paletakis! :-))

"Hoje, apenas grata recordação num recesso da mente, onde guardo os rebotalhos da existência,tal uma roupa velha,sapatos de destino incerto,bonecos mutilados, livros sediciosos á minha impaciência,recordações de vocação ao pó que não juntam poeira, porque constantemente manuseadas , reviradas pelo pensamento crítico que um dia não o foi ; por isso mesmo, feito passageiro da stultifera navis , embarcado sem bilhete de retorno , sentindo-se desgraçado e maravilhoso , vivo como nunca dantes ."

E Sorte a Sua em tê-lo encontrado - inversamente proporcional ao triste fim do Professor.

Um Forte Abraços! Jorge

ps: sempre é bom tomar cuidado com o vão central das escadas em formato espiral...

andre albuquerque

Jorge: grato pelo olhar;mas um cara que suicida-se fumando charuto deve ser complicado mesmo...rs,rs,rs.Forte abraço.

Marcelo Pirajá Sguassábia

O nome Manassés significa esquecimento. Acho que até nisso você pensou, André, ao conceber essa concisa e intrincada narrativa. Fantástica lavra, meu amigo!

andre albuquerque

Marcelo: grato pelo olhar e comentário;a memória pode ser fuga e enfrentamento,simultaneamente ; a demência ,ás vezes,tenta associar-se ao que interpreta como poesia e os resultados são imprevisíveis ,muitas veze.Forte abraço.

Penélope

As memórias muitas vezes se eternizam e nos tornam fluxos mais humanos. Estes achados que nos fazem salivar as grandes e intensas lembranças.
Excelente texto.
Ainda bem que caiu em mãos de alguém que o fez reviver... Grata pela sua passagem pelas minhas páginas.
São muitos os espaço e o tempo de visitá-los, às vezes são quase que inexistentes, mas aqueles que me visitam faço questão de conhecer e retribuir a gentileza e atenção, afinal, todo aquele que escreve escreve para alguém...

Grande abraço!!!

andre albuquerque

Malu:grato pelo olhar e comentário.Forte abraço.