segunda-feira, 17 de setembro de 2012

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Leonardo Boff - Que tipo de Igreja está em crise e em degeneração?

Bento XVI cometeu erros de governo, referentes a evangélicos, 
muçulmanos, judeus, às mulheres 


A Igreja hierárquica católica está mergulhada numa grave crise  de autoridade, de credibilidade e de liderança devido aos vários escândalos financeiros mas de modo criminoso por causa dos pedófilos: padres, bispos e um  cardeal.

A crise de autoridade, credibilidade e  liderança da Igreja institucional.

Tais fatos feriram a autoridade eclesiástica, que se viu profundamente golpeada pelos vários intentos de negar,  despistar e, por fim,  ocultar atos criminosos referentes à pedofilia dos padres, a ponto de um tribunal  de justiça do estado de Oregon nos EUA que, a despeito da imunidade jurídica do estado do Vaticano, pretendia levar aos tribunais autoridades eclesiásticas romanas, eventualmente até o então cardeal Joseph Ratzinger por se recusar a aplicar sanções contra o padre Lawrence Murphy que entre 1950-1975   abusara sexualmente de duzentos jovens  surdos. E particularmente sua carta de 2001 enviada aos bispos, impedindo-os, sob pesadas penas canônicas, de denunciar os pedófilos à  justiça civil. Tal atitude foi considerada cumplicidade com o crime e tentativa de acobertamento, o que configura  um delito. Tais atitudes antiéticas erodiram a credibilidade  da instituição. Como pode pretender ser “especialista em direitos humanos” e “mãe e mestra da verdade e da moral” se, por obras e omissões, nega abertamente o que prega?

A crise é também de liderança, pois Bento XVI cometeu vários erros de governo, referentes aos evangélicos, aos muçulmanos, aos judeus, às mulheres, ao espírito do Vaticano II, quando fez  conceções aos seguidores do bispo cismático Lefbvre, como a reintrodução da missa em latim e da oração pela conversão dos judeus infiéis e, em geral,  por causa de seu enfrentamento obsessivo contra a modernidade, vista negativamente como decadência e fonte de todo tipo de erros, especialmente do relativismo. Este é obstinadamente condenado mas, curiosamente, a partir da mesma perspectiva, só que inversa: a de um rigoroso absolutismo. Não é estratégia inteligente combater um erro com outro erro, só que a partir do polo oposto.

As consequências estão se mostrando desastrosas. Tomemos apenas como exemplo a Igreja Católica alemã, tida como muito consolidada: somente em 2010 250 mil fiéis se desvincularam da instituição, o dobro de 2009 (Hans Küng, A Igreja tem salvação? 2012, 20).  Esta emigração interna está ocorrendo em todo o mundo, especialmente nos EUA e na Irlanda, onde o caso dos pedófilos ganhou formas epidêmicas. No Brasil, entre outros motivos, a desmoralização da instituição romana ajudou a que as cifras dos católicos tenham caído drasticamente. O censo do IBGE mostrou que entre 2000 e 2010 a parcela católica caiu de 73,6% para 64,6%. Na diocese do Rio, dirigida por  30 anos por um arcebispo autoritário e por vezes despótico como dom Eugenio Sales, o número de católicos chegou ao número historicamente mais baixo de todos, apenas 45,8%.

Esta crise da instituição católica pôs à luz a estrutura de poder e a forma como se organiza a condução da comunidade dos fiéis. Esta é caracterizada por uma monarquia absolutista, tendo o papa, seu chefe, “poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal” (cânon 313), aumentado  ainda com o  atributo de infalibilidade em assuntos de fé e moral. Vigora o monopólio do poder e da verdade nas mãos da hierarquia, com claros sinais de patriarcalismo, tradicionalismo, clericalismo, animosidade para com o sexo e com as mulheres. Gestou-se o que Hans Küng denominou de “o sistema romano”, cujo eixo articulador é a figura do papa com “a plenitude do poder” (plenitudo potestatis) jurídico único e exclusivo sobre toda a comunidade e cada um dos fiéis.

O aumento do espírito crítico, o acesso mais  fácil aos documentos históricos e a resistência de católicos mais lúcidos ao ato de aceitarem as razões altamente ideologizadas da instituição no afã de se autolegitimar, invocando sua origem divina e se reclamando à vontade de seu fundador Jesus, fizeram com que muitos tenham se afastado deste tipo de Igreja ou ficado totalmente indiferentes a ela. A manutenção da ignorância dos fiéis e a estratégia da infusão do medo, como  mostrou o notável historiador Jean Delumeau (O medo no Ocidente, 1987), fatores decisivos para a conversão de povos inteiros no passado, hoje são inaceitáveis e  simplesmente condenáveis.

Concretamente, a comunidade cristã está divida em dois corpos: o corpo clerical (do papa ao diácono) — que detém de forma  exclusiva o poder de mando, da palavra, da doutrina e dos instrumentos de salvação — e o corpo laical, constituído pelos fiéis leigos, homens e mulheres, sem nenhum poder de decisão, cabendo-lhes apenas ouvir, obedecer e executar as determinações que vêm de cima. Isso não é nenhuma caricatura, mas a descrição do que efetivamente ocorre e é sancionado pelo Direito Canônico.

À hierarquia tudo, ao leigo nada: testemunho de dois papas.

Ninguém melhor que o testemunho de dois papas para  explicitar esta divisão teologicamente problemática: Gregório XVI  (1831-1846): "Ninguém pode desconhecer que a Igreja é uma sociedade desigual na qual Deus destinou  uns com governantes e  outros como servidores; estes são os leigos, aqueles são os clérigos”. E mais rígido ainda é Pio X (1835-1914): ”Somente o colégio dos pastores tem o direito e a autoridade de dirigir e de governar; a  massa não tem direito nenhum a não ser o de deixar-se governar qual rebanho obediente que segue seu pastor”.  Estas expressões, que estão  a quilômetros-luz da mensagem de Jesus, nunca foram desditas e continuam ainda mantendo sua validade teórica e  prática.

O corpo laical, por sua vez, também se organizou em movimentos e comunidades, seja dentro do corpo clerical, seja em sua margem. Nele funciona o princípio da comunhão e da participação igualitária, o poder  é circular e rotativo, os serviços são distribuídos entre os membros, consoante suas capacidades e habilidades; todos participam, tomam a palavra e coletivamente elaboram as decisões acerca dos caminhos da comunidade. O centro é ocupada pela Escritura, lida e comentada comunitariamente e aplicada para as situações concretas. Não se opõe à Igreja-instituição hierárquica papal e até se alegra quando alguém da hierarquia participa da vida das comunidades. Mas cabe enfatizar que ela segue outra lógica, não paralela, mas diferente. Entretanto, não deixa de sofrer com a divisão, pois a maioria intui que tal divisão não corresponde ao sonho de Jesus: que “todos sejam irmãos e irmãs e que ninguém queira ser chamado de pai ou mestre, porque um só é o Mestre, Cristo” (Mt 23, 9-10). Isso é permanentemente negado.

Qual dos tipos de Igreja que está em crise e em franca degeneração nos dias atuais? É a Igreja-instituição-monárquico-absolutista, cujas razões não conseguem convencer os fiéis nem se sustenta diante  do senso comum e do sentido do direito e da justiça que se impuseram na reflexão dos últimos séculos, não sem influência do cristianismo. Este tipo de Igreja não é nem progressista nem tradicionalista. É simplesmente medieval e tributário do iluminismo dos reis absolutos por vontade de Deus.

As coisas não caem prontas do céu nem saíram diretamente da manga da túnica de Jesus. Elas se constituíram historicamente num processo lento mas persistente de acumulação de poder até alcançar o grau absoluto, igualado ao poder de Deus (o papa como representante de Deus). Aqui bem se realiza a perspicaz observação de Hobbes: “O poder não pode se garantir senão buscando mais e mais poder”, até chegar à sua forma suprema e divina. Pois foi o que ocorreu com o poder dos papas romanos e a hierarquia católica. Esta forma concentradíssima de poder constitui o nó da crise já no passado e atualmente de forma ainda mais grave.

No próximo envio estudaremos com certo detalhe como se chegou à atual monarquia absolutista e centralizadora da Igreja-instituição.

Leonardo Boff
Teólogo/Filosófico

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