O ANJO
20.
Ângelo começou o dia com um vagar de
navegador exímio, atento. A maré, alta não o oprimia. Não se detinha no azul
opaco da água que avançava trazendo pedaços de troncos para a terra e deixando
a areia escura e pegajosa. Recolhia, com algum desdém, os seus pertences. Preparava-se
para levar a mulher e a filha para uma terra, ainda salgada, mas menos
sonolenta.
Ariane deixava-se levar. Ainda dirigia
seus olhos para o céu, perscrutava o perfume das árvores, procurava no oceano
peixes e animais que não conhecesse. Falava muito pouco nos últimos dias. Com
freqüência franzia o cenho, levava a mão aos cabelos, respirava um pouco
ofegante. Gostaria que a vida tivesse um ritmo mais linear, próximo de uma
sinfonia de abstratos e divinos, sem aqueles ritmos de terra, fantasias e
eloqüentes lapsos com que de fato se fartava. Mas acomodava-se. Percebia que a
razão, o nobre fruto da idéia, era um fruto, com uma função, um diálogo de ruptura,
complemento e rebeldia ante a natureza. Algo que viera depois como um instinto
refinado e quase descabível em algumas circunstâncias. Esse observador, que se
deleitava e comovia com o ritmo leve e fruído do espírito, nem sempre se vestia
corretamente para a aparente desconexão da natureza. Essa criava por onde
encontrasse tempo e espaço e cabia à maestrina razão, que se pretendia
onipresente e parente de algum deus, afiná-la, educá-la, incutir-lhe, por uma
prática ou por uma mentalização, uma ética, um deslizar menos bruto. Quem
sabe... Ariane agora olhava para si, afinal por que tanto se oprimia? Seria
apenas o medo do desconhecido gerado no acaso selvagem e impiedoso?
Deu de ombros. Ali estava Ângelo com sua
quase irritante perfeição. Acima e ao lado, receptor e criador, tênue, leviano,
refinado, hedonista... sem prejuízo de se si, à mercê da vida, amante da terra,
vivendo o presente e desconhecendo o futuro.
Ariane fitava-o com intensidade. Erraram
os que com demasiado desvelo quiseram demarcar as leis e fibras do horizonte. O
movimento poderia ser interrogado, cerceado, algumas vezes dominado. Mas não
poderia ser dominante, visto que não era único. Por mais que se cobrisse uma
grande gama de operações e um extenso território ainda a vida aconteceria em
minúcias e levantes novos ou surpreendentes, o que vem a dar no mesmo, e eram
os seres destinados a viver. Observar, deleitar-se nas leis do espírito e da
mente, porém, principalmente, deixar-se levar, recriar, renascer, recomeçar,
acontecer. E muitas vezes à margem do tão sonhado domínio. Apenas ao encanto de
si mesmos, criadores, árvores e frutos de uma sombra frondosa, cheia de vento e
serenidade, pois se era esse rio caudaloso à procura de um mar ou, melhor, era-se
parte e vontade do meio, à sua mercê e para seu deleite, visto que começava-se aonde fora construído um caminho
que não estava visível ou imprimido, mas, que se oferecia para que a
consciência se manifesta-se no silêncio ou na ação.
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